Oftalmologia. “A maioria da população recorre ao privado. O acesso é difícil”

O acesso aos cuidados de saúde ocular ainda fica aquém do necessário em Portugal. Cerca de 13% das pessoas nunca recorreram a este tipo de cuidados, o que "é preocupante", destaca a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, Angelina Meireles, em entrevista ao SaúdeOnline, concedida juntamente com o também oftalmologista Rufino Silva.

A que conclusões chegou o estudo Cuidados médicos na área da saúde ocular em Portugal, feito pela SPO e pela universidade Católica?

Rufino Silva (médico oftalmologista, Prof. da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra): O estudo efetuado pelo SPO e a Universidade católica incluiu 2.373 inquéritos válidos e representativos da população portuguesa com mais de 21 anos, do seu  nível de escolaridade e das diferentes áreas regionais de saúde de Portugal.

Os resultados abrangem um leque de temáticas  com o objetivo de conhecer a que serviços de saúde os portugueses recorrem, qual o nível da sua saúde ocular, o impacto da sua visão (ou falta dela) nas atividades da sua vida diária, a que profissionais recorrem, em caso de problemas de saúde  ocular, e qual o comportamento da população perante o cuidado de saúde ocular dos seus filhos menores. Apresentamos algumas das conclusões do estudo:

– Mais de metade da população (53,4%) admite ter problemas de saúde ocular, sendo os erros refrativos os mais frequentes – miopia (23,7%) e astigmatismo (18,8%). Só em terceiro lugar é referida a catarata. Os problemas menos referidos são a retinopatia diabética (0,6%) e a Degenerescência Macular da Idade (0,6%). Dos inquiridos que afirmam ter sido diagnosticados com diabetes, 6,3% afirma ter sido diagnosticado com Retinopatia diabética.

– Quanto ao impacto da diminuição da visão da vida diária da população, a perceção da população quanto à sua capacidade visual é boa: 44,5% da população considera ter problemas de visão não graves, enquanto 42,7% considera que a saúde dos seus olhos é boa. No entanto, 33,1% da população considera que a falta de visão “influencia”  ou “influencia muito” a produtividade profissional.

– Do total dos respondentes com filhos, 23,5% deles revelam nunca ter feito uma consulta de saúde ocular aos seus filhos menores.

Como classifica a procura por cuidados de saúde oculares por parte dos portugueses e o nível de acesso a consultas de oftalmologia? Existem diferenças regionais assinaláveis?

Rufino Silva: A maioria da população portuguesa (57,2%) recorre ao sistema privado de saúde quando necessita de assistência para a sua saúde ocular. Há, contudo, uma percentagem muito significativa da população que recorre ao setor público, seja SNS ou subsistemas de saúde (35,3%). Relativamente à parte da amostra que recorre ao sistema de saúde público é, sobretudo, a população mais idosa (23,39%). No caso do setor privado, a maior fatia de utentes tem entre 45 e 55 anos (22,89%).

– No que concerne aos profissionais na área, 82% da amostra total refere o Médico Oftalmologista como o profissional mais bem preparado para tratar da saúde ocular e, de facto, 77,2% recorre a um Médico Oftalmologista para diagnóstico dos seus problemas. Esta percentagem diminui para 65,3% na fase de acompanhamento regular do problema de saúde  previamente diagnosticado. A conveniência e facilidade de acesso, assim como a confiança, parecem ter um papel preponderante na escolha do profissional.

–  Existem diferenças regionais na prestação dos cuidados. Por exemplo, em relação à saúde ocular infantil, na ARS Norte, 54,3% afirmam ter levado os filhos a realizar o rastreio visual fotográfico. Na ARS Centro, 49,7% afirmam ter levado os filhos a realizar o rastreio visual fotográfico. A zona onde a percentagem foi menor, foi na ARS do Algarve onde, de todos os inquiridos com filhos na zona, 25,7% revelam ter levado os filhos a realizar o rastreio visual fotográfico.

Com que regularidade deve ser avaliada a saúde ocular? Preocupa-o/a a percentagem de pessoas que nunca o fez?

Angelina Meireles: Sendo a visão o sentido mais valorizado pelas pessoas, para o qual o nosso cérebro dedica cerca de 30% do seu córtex e em que cerca de 80% de todas as nossas impressões são percebidas através da visão, torna-se fundamental não só o desenvolvimento de uma boa saúde ocular como a sua manutenção. Assim, a ida ao médico oftalmologista devia fazer parte dos nossos hábitos.

Não deve acontecer apenas quando surge algum sintoma, mas sim fazer-se com alguma regularidade para que a deteção precoce de alguma doença possa ser tratada atempadamente, ou até mesmo prevenida. Cabe aqui fazer um destaque especial para dois grupos populacionais, as crianças e a população mais velha. Aliás, no caso das crianças, em que a janela temporal é apertada para diagnosticar as alterações oftalmológicas capazes de provocar ambliopia, vulgo “olho preguiçoso”, está já implementado a nível nacional o Rastreio de Saúde Visual Infantil (RSVI) a todas as crianças no semestre em que completam dois anos e num segundo momento aos quatro anos.

A necessidade deste rastreio deve-se ao facto de, uma criança saudável e que não revela sintomas, pode ter uma alteração da visão, como por exemplo, um erro refrativo ou um estrabismo, que se não tratado atempadamente pode comprometer para o resto da vida a sua visão. Já nos adultos mais velhos, para além da chamada “vista cansada”, que geralmente surge por volta dos 45 anos, que é quando grande parte da população recorre pela primeira vez a uma consulta, outras doenças como o glaucoma, a retinopatia diabética (também objeto de um programa de rastreio nacional) e a degenerescência macular da idade (DMI) podem surgir agravando-se com o evoluir da idade com perda progressiva e irreversível da visão. Só numa consulta com o oftalmologista podem ser diagnosticados os sinais precoces destas ou de outras doenças oculares que, se tratadas atempadamente, pode ser evitada a cegueira .

Assim, e com base nas normas de orientação clínica, o exame oftalmológico deve ser realizado:

– em crianças de alto risco ( potencial para sofrer retinopatia de prematuridade, história familiar e/ou suspeita de retinoblastoma, catarata infantil, glaucoma congénito e doenças genéticas e metabólicas) nos dois primeiros meses de vida;

– rastreio de saúde visual infantil com, pelo menos, uma observação entre os 0 e 2 anos e outra entre os 2 e 5 anos;

– dos 5 aos 45 anos: de acordo com os fatores de risco, ou se ocorrer baixa de visão, aparecimento de estrabismo, traumatismo ocular, etc.;

– dos 45 aos 65 anos: aconselha-se vigilância de 4 em 4 anos;

– depois dos 65 anos : aconselha-se vigilância de 2 em 2 anos;

– rastreio sistemático aos doentes diabéticos de acordo com o Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Diabetes.

De acordo com o estudo realizado, cerca de 30% da população inquirida apenas recorre aos cuidados de saúde ocular quando tem algum problema, e 13% nunca o fez, o que para mim é preocupante. Podemos interpretá-los de duas formas: por um lado, podem refletir algum grau de negligência, não apenas das próprias pessoas relativamente à sua saúde ocular, mas também dos diversos órgãos com competências para a sua promoção; por outro, o acesso difícil ou inexistente aos serviços de saúde em determinadas regiões do país.

Um dado ainda mais preocupante é a percentagem de crianças que não fizeram qualquer rastreio visual.

Que melhorias devem ser implementadas nos próximos anos, de modo a aproximar os portugueses dos cuidados de saúde oculares?

Angelina Meireles: Além da implementação das várias medidas propostas na Estratégia Nacional para a Saúde da Visão elaborada em 2018, de que fazem parte, por exemplo, a criação de Pontos de Avaliação Básica em Oftalmologia nos cuidados de Saúde Primários, da responsabilidade do Governo, cabe a outras Instituições como é o caso da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO) promover a saúde ocular dos portugueses através de campanhas de sensibilização, consciencialização e conhecimento das múltiplas doenças oftalmológicas não só nos meios de comunicação social tradicionais como rádio, televisão e jornais, assim como nas redes sociais. Posso adiantar, por exemplo, que  estamos a desenvolver conteúdos específicos para que o público em geral, acedendo ao site da SPO, esclareça as suas dúvidas e saiba como deverá proceder.

SO

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