13 Set, 2022

Pico de reformas dos médicos de família é atingido este ano. “Sabíamos que ia acontecer e não retemos os jovens”

O saldo negativo entre aposentações e entradas de médicos de família deve manter-se nos próximos anos, aumentando o número de portugueses sem médico. Isto porque apenas 60 a 70% dos recém-especialistas ficam no SNS, número insuficiente para compensar as reformas. É necessária uma mudança de políticas para tornar o SNS mais atrativo, diz o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Nuno Jacinto, em entrevista ao SaúdeOnline.

No ano passado aposentaram-se 577 especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF). Em 2022, espera-se que esse número aumente de forma significativa e atinja o pico?

Sim, há, em 2022, 1089 médicos de família em condições de se aposentarem. Em 2023 serão 420 e em 2024 cerca de 300. Resta perceber se todos eles se reformam ou não e depois existem os imponderáveis, dos colegas que se reformam antecipadamente – por doença ou por outra situação. Eventualmente poderá haver colegas a protelar a aposentação mas a esmagadora maioria não fica até aos 70 anos. A maioria sai assim que tem condições para se reformar sem penalizações e esse é um dos problemas. Se mais colegas fossem ficando, o número de portugueses sem médico de família, que tem vindo a aumentar, não subiria tanto.

O Ministério da Saúde poderia ter antecipado este problema ou, pelo menos, ter reagido de outra forma perante o mesmo?

Este volume de reformas era previsível, todos sabíamos que ia acontecer, tem a ver com a demografia médica. O problema é que os colegas que se reformam não estão a ser substituídos porque não conseguimos reter os recém-especialistas. Nem nos concursos que se fazem quando os jovens acabam a formação da especialidade, nem nos anos seguintes. Isto origina, em alguns centros de saúde, situações em que os médicos mais velhos se reformam e é difícil substituí-los também porque os concursos são lentos e as mobilidades demoram. É uma situação complicada, quer para as UCSP, USF modelo A e até para as USF modelo B. O saldo entre os colegas que saem e os que entram é constantemente negativo.

Em 2023 vamos ter menos médicos a exercer do que em 2022?

É provável que sim. Formamos cerca de 500 especialistas em MGF por ano e cerca de um terço destes não fica no SNS – nalgumas zonas chega até aos 40%. É expectável que este cenário se mantenha nos próximos concursos. O que significa que estamos a reter pouco mais de 300 recém-especialistas por ano. Ora, se considerarmos que, no próximo ano, há possibilidade de se aposentarem 420 médicos (a somar a outros colegas que saem para o privado ou doença), o saldo continua a ser negativo. Eventualmente, só daqui a dois/três anos, teremos as coisas equilibradas, mas, nessa altura, teremos um número ainda mais assustador de utentes sem médico de família.

Quanto menos atrativo for o SNS e menos atrativas forem as condições de trabalho, mais difícil é reter os médicos. A capacidade de formar internos não se vai conseguir manter, a atratividade da especialidade vai diminuir. Até pode acontecer que, daqui a algum tempo, não tenhamos 500 internos em formação, porque não temos orientadores e internos que escolham MGF.

Neste quadro, começamos a ter zonas do país que até agora não tinham problemas de cobertura mas que começam a ter população a descoberto.

Há zonas muito carenciadas. A região de Lisboa e Vale do Tejo tem um problema crónico, com unidades muito carenciadas, com dificuldades em captarem médicos desde há muitos anos – tal como o Algarve. O que acontece é que começamos a ter zonas, que até agora tinham uma cobertura razoável de médicos de família e que começam a ter dificuldades (como Trás-os-Montes, Beira Interior, Alentejo).

Perante o agravar da situação, a APMGF continua a recusar a atribuição de listas de utentes a médicos não especialistas em MGF?

Isso não é solução. Uma coisa é termos esses colegas a darem algum tipo de apoio nos centros de saúde mais carenciados (sob supervisão), a trabalharem lado a lado com os especialistas em MGF. Outra coisa diferente é acharmos que podemos colocar estes colegas não-especialistas a fazerem o trabalho dos especialistas em MGF. Não é por não termos obstetras que vamos colocar dermatologistas a fazerem urgências de obstetrícia. Existem médicos de família em Portugal, não estamos a saber captá-los para o SNS. Há, pelo menos, 1500 médicos fora do sistema público. Tem de haver uma mudança de políticas.

O que espera do novo ministro da Saúde?

Esperamos uma aposta clara nos recursos humanos no SNS, e em particular na Medicina Geral e Familiar. Isso passa por encontrar estratégias que permitam tornar o SNS atrativo para os médicos de família; passa por questões salariais e de revisão das grelhas, já discutidas com os sindicatos; passa por questões de carreira médica, de autonomia das equipas, flexibilidade de horários, condições de trabalho no que diz respeito às instalações, equipamentos ou sistemas de informação. Não é uma questão da pessoa titular do cargo, é um problema de políticas, que têm de mudar.

SO

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