26 Abr, 2024

Cuidados Paliativos. “Os decisores políticos não têm dado a esta área a prioridade que precisa”

Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, a enfermeira Catarina Pazes fala desta área tão importante e necessária para o bem-estar dos doentes e das famílias, mas cuja sua necessidade não é devidamente entendida, o que dificulta a referenciação e o acesso. No seu entender é preciso sensibilizar a população em geral, mas também os próprios profissionais de saúde e os decisores políticos.

De que forma os Cuidados Paliativos podem melhorar a qualidade de vida dos doentes e das suas famílias?
Os Cuidados Paliativos são uma especialidade clínica que tem como ação principal o tratamento e a prevenção do sofrimento que decorre das doenças avançadas ou graves.

Ou seja, em todas as condições que originem sofrimento, as pessoas podem ter vantagem em ser acompanhadas por uma equipa especializada em Cuidados Paliativos. Isso é tão mais eficaz quanto mais fácil for o acesso à especialidade por parte dos utentes e das famílias e quanto mais precoce for esse acesso atempado.

Os Cuidados Paliativos atuam em conjunto com outras especialidades. Existem cada vez mais pessoas com doença crónica, por exemplo na área neurológica (como as demências) e na oncológica. Mas, também com doenças cardiovascular e renal, entre outras.

Existe uma prevalência maior de pessoas com doença, logo é natural que haja, também, uma maior necessidade de abordagem centrada no doente, na pessoa e na família. Uma abordagem que se preocupe com o conforto, o bem-estar, a qualidade de vida e o controlo dos sintomas, além do controlo da doença.

Os Cuidados Paliativos têm uma abordagem muito mais centrada na pessoa, naquilo que deseja para si agora e no futuro. Os especialistas estão preparados para trabalhar em equipa, de forma a controlar os sintomas, a apoiar a família e a comunicar, falando daqueles aspetos mais difíceis. Uma conversa mais profunda sobre a vida, a situação, os medos e as decisões a tomar.

É uma abordagem e uma intervenção muito necessária. Está estudado que faz grande diferença na vivência da doença e do processo ao longo da vida. E não só do fim da vida, como muitas vezes se pensa.

 

“Os Cuidados Paliativos têm uma abordagem muito mais centrada na pessoa, naquilo que deseja para si agora e no futuro”

 

Estudos internacionais apontam que o encaminhamento dos doentes para os Cuidados Paliativos ocorre tardiamente, em média 30 a 60 dias antes do falecimento, impedindo a sua boa prática. Além disso, em Portugal, há mais de 100 mil doentes a precisar de Cuidados Paliativos e só 30% dos doentes graves têm acesso. O que é que se passa? Como é que se explica esse atraso e as dificuldades de acesso?
São várias as origens do problema! Uma é o desconhecimento e a falta de formação e de competências dos profissionais em geral, para trabalhar e tratar doentes com sofrimento.

A abordagem a estas pessoas não é exclusiva das equipas especializadas em Cuidados Paliativos. Vou fazer um paralelo com outra especialidade, por exemplo a diabetes é muito prevalente em Portugal, mas nem todos os diabéticos precisam de ser acompanhados por um endocrinologista, porque a Medicina Geral e Familiar e a Medicina Interna estão aptas para tratar a maior parte destes doentes, uma vez que têm estas competências na sua formação de base.

O mesmo não se passa com os Cuidados Paliativos, uma área clínica especializada. Nem todos os médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais – trata-se de uma área multidisciplinar – têm formação de base em Cuidados Paliativos.

Por um lado, isso dificulta a abordagem do doente e da família. Mas, por outro, dificulta o acesso no que diz respeito à referenciação para a especialidade, porque a identificação desta necessidade não é eficaz. Não estamos capacitados, sequer, para a identificação, porque há um desconhecimento base daquilo que são realmente os Cuidados Paliativos.

É por isso que os doentes são chamados tardiamente, porque ainda há a ideia de que esta área especializada só tem interesse para o fim da vida. O que referi há pouco explica a razão pela qual é importante que o doente seja seguido em Cuidados Paliativos mais cedo e ao longo de todo o processo de doença, que conheça a equipa e que vá criando uma relação de confiança e um plano que preveja todas as suas preocupações e não só os aspetos puramente relacionados com a doença.

Depois há outro problema que explica porque é que só 30% dos doentes tem acesso. Os decisores políticos não têm dado a esta área a prioridade que precisa. Uns aspetos estão ligados aos outros, a obrigatoriedade da formação base de todos os profissionais e de uma estratégia que tenha em conta as necessidades paliativas da população implica decisões políticas macro ao nível da saúde. Estas decisões só acontecem quando o conhecimento e a sensibilidade dos decisores sobre a área são grandes, o que não tem acontecido.

Apesar de termos, em Portugal, uma legislação bastante desenvolvida na área dos Cuidados Paliativos, na área da deontologia médica e da Enfermagem, para cuidados às pessoas com doença avançada e em fim de vida, que tenta proteger quem está numa condição mais frágil e vulnerável, a realidade é que a ação, na prática, não tem acompanhado a legislação. Continuamos com o acesso limitado, que é muito preocupante e é um dos grandes problemas do Serviço Nacional de Saúde e do próprio sistema nacional de saúde.

Porque estas pessoas que têm necessidade de Cuidados Paliativos, que têm dor e outros sintomas não controlados, que estão angustiadas com a sua doença, que não sabem o que fazer em determinados momentos, que não têm um suporte que os apoie nessas tomadas de decisão e nestes momentos acabam por recorrer ao serviço de urgência e tendem a marcar consultas avulsas mais vezes e a ter uma polimedicação muito mais frequente. Procuram respostas em todo o lado, mas de forma avulsa.

Há um “não acompanhamento” destes doentes e não uma integração real dos cuidados como é prevista na abordagem dos Cuidados Paliativos. Faz muita diferença estar acompanhado por um profissional especializado em Cuidados Paliativos também por isto. Este não acesso e não desenvolvimento da área estão relacionados com esta dificuldade de compreensão da dimensão do problema e das consequências de persistir.

 

“Ainda há a ideia de que esta área especializada só tem interesse para o fim da vida”

 

O que é que a APCP tem feito no sentido de melhorar esta realidade?
Temos ações a vários níveis, um deles está relacionado com a sensibilização e com a mobilização dos decisores, ou seja, pretendemos fazer chegar a quem de direito aquilo que são as recomendações, as nossas propostas, demonstrando, com consciência e com evidência internacional, como esta área traz mais-valias para o sistema e para o Serviço Nacional de Saúde. Esta tem sido uma ação permanente da APCP desde que foi criada, há quase 30 anos.

Outra ação, também muito importante, é a formação dos profissionais, que tem vindo a desenvolver-se e a adaptar-se às necessidades. Estamos a preparar várias formações para o agora. Formação básica, formação avançada para profissionais de Cuidados Paliativos e outras para quem não trabalha na área. São formações em Nutrição, Oncologia, doença neurológica e insuficiência de órgãos.

Temos vindo a desenvolver um trabalho de parceria com outras associações e sociedades científicas, nomeadamente a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, a Sociedade Portuguesa de Neurologia, a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia e a Sociedade Portuguesa de Pneumologia, ou seja, as várias entidades com quem temos de criar sinergias, de forma a estabelecer parcerias que facilitem a formação e protocolos de ação entre as duas áreas.

Se por um lado, levamos até aos médicos de outras especialidades informação sobre Cuidados Paliativos, por outro trazemos para os paliativistas informação dessas mesmas áreas, de forma a tratarmos e prestarmos cuidados aos doentes que acompanhamos.

Além disso, temos levado a cabo várias ações nas redes sociais, assim como publicação de artigos, participação em entrevistas, entre outros, com o objetivo de sensibilizar e esclarecer a comunidade em geral. A necessidade do desenvolvimento desta área tem que ser sentida e notada pela comunidade, caso contrário não será feita uma exigência que leve os políticos a decidir nesse sentido.

Todos os anos, em outubro, assinalamos o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos e a APCP celebra a data com várias ações dirigidas à população, assim como com eventos para profissionais de saúde.

 

“A necessidade do desenvolvimento desta área tem que ser sentida e notada pela comunidade, caso contrário não será feita uma exigência que leve os políticos a decidir nesse sentido”

 

Neste momento, estão a organizar o congresso nacional…
Sim, que este ano se vai realizar de 10 a 12 de outubro, na Universidade de Aveiro. São os XI Congresso Nacional de Cuidados Paliativos e o II Congresso Internacional da APCP. O programa é muito aberto e dirigido para a integração de outras áreas e especialidades. É um programa cuidado, preparado e pensado, tendo em conta a necessidade de se estabelecer pontes e parcerias e de trabalhar em conjunto com as várias especialidades, que é cada vez mais valorizado entre nós.

Os doentes precisam que os profissionais trabalhem de forma integrada e não sintam que têm de escolher entre uma área e outra. Isso é muito injusto para o doente e para a sua família e, se não houver esta integração e este cuidado, pode acontecer.

Este ano vamos trabalhar a integração de cuidados no nosso congresso.

 

Como é construir um programa científico para um público tão abrangente?
Não é assim tão complexo, embora seja muito trabalhoso, porque é um programa centrado na pessoa. Quando centramos os objetivos do congresso nos melhores cuidados para a pessoa, construímos o programa à volta dessa ideia.

O tema global do Congresso é “Integrar comunidades, consolidar pontes”. Ao longo de três dias, vamos ter várias mesas, workshops e encontros com peritos com temas diversos nas áreas dos Cuidados Paliativos Pediátricos, das doenças neurológicas, da Oncologia, da tecnologia e inovação, mas sempre muito multidisciplinar. É importante conhecer a visão e a perspetiva de cada área científica e ouvirmo-nos uns aos outros.

O objetivo é que depois do congresso possamos trazer para a nossa prática clínica mais-valias, conhecimentos e uma nova visão, que nos ajude a melhorar os cuidados e a resposta que damos aos doentes e às famílias.

Temos alguns convidados internacionais que nos vêm ajudar com a sua experiência e com a sua visão. O programa é bastante apelativo e esperamos ter especialistas das várias disciplinas, como já referi, terapeutas, psicólogos, médicos, enfermeiros, mas também das áreas da Oncologia, Pediatria, Medicina Geral e Familiar, Psiquiatria, das várias áreas de especialidade de Enfermagem, Reabilitação, entre outros.

 

Quantas pessoas esperam, em média?
Entre 450 a 500 pessoas. Tem sido, em média, o número de participantes que temos tido nestes eventos. O congresso realiza-se de dois em dois anos e no intermédio organizamos as jornadas de investigação.

Este ano, vamos ter também o Prémio Reportagem em Cuidados Paliativos. É a 1.ª edição, realizada com o objetivo de incentivar os jornalistas a escrever, a procurar e a contar histórias que expliquem o que são os Cuidados Paliativos, o que fazem, a diferença que trazem à vida das pessoas, de forma a melhorar o acesso à informação sobre a área.

Temos também um podcast, criado no final do ano passado, que foi lançado em outubro de 2023, na altura do Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, com vários temas. Está disponível no Youtube, no Spotify ou até mesmo através do nosso site. São oito episódios, cada um com um tema diferente.

Para vermos e percebermos esta área como sendo muito importante para a nossa vida, precisamos de saber mais e ter mais conhecimento para podermos exigir, no dia a dia, aquilo que precisamos. Essa tem sido uma preocupação da APCP.

 

Texto: Sílvia Malheiro

Foto: Ana Catarina Pica

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