Entrevista. “Vemos com apreensão a aprovação à pressa das Unidades Locais de Saúde sem um real envolvimento das equipas”

Diogo Fernandes da Silva, médico especialista em Saúde Pública, cofundou em 2016 a nobox, uma empresa dedicada à formação e transformação de equipas em saúde. Em entrevista, o responsável fala sobre as Unidades Locais de Saúde e sobre como se pode motivar as equipas.

Vive-se, atualmente, uma crise no SNS. Muitos serão os problemas, mas na sua opinião quais são os mais impactantes?

Neste momento, o principal problema é que o foco do SNS é garantir o atendimento nos Serviços de Urgência, sem dispor de tempo e recursos para distribuir esta pressão, por um lado, na prevenção, por outro, na assistência de proximidade através dos cuidados de saúde primários e integração com os serviços hospitalares. Neste contexto, com uma demografia cada vez mais envelhecida e um avanço científico que aumenta a complexidade e profundidade com que os casos são tratados, é natural que as equipas sobrevivam no dia a dia tentando não exceder os tempos de espera, que infelizmente são muitas vezes ultrapassados. Adicionalmente, os profissionais e equipas estão, a cada dia que passa, mais desgastados e desmotivados, sem sentirem que algo mudará a curto prazo, o que dificulta a retenção e atração dos profissionais. Este ciclo vicioso precisa de ser quebrado, para que se consiga olhar novamente para o SNS como a resposta para a saúde de todos os portugueses.

Qual a sua causa? Falta de estratégia, de liderança por parte das equipas e da Tutela?

São várias as causas, porque esta desfragmentação tem acontecido ao longo dos tempos, de forma cumulativa. Como referido, uma parte é intrínseca ao sistema, pois depende das maiores necessidades e maiores níveis de utilização e exigência da população. A saúde é gerida e organizada atualmente com pouca inovação, apesar dos grandes avanços a que se tem assistido na qualidade dos cuidados. Uma das principais causas deve-se à incapacidade de o sistema se reinventar e se adaptar realmente ao agora e ao futuro, respondendo às necessidades da atualidade. Um exemplo disso são as estruturas hierárquicas cristalizadas e sobrecarregadas de burocracia, assim como a falta de autonomia e responsabilidade por parte das administrações e gestão de topo, sem a devida avaliação e incentivos para a qualidade dos cuidados e os resultados obtidos. Esta inércia alimenta ainda mais a desmotivação e falta de esperança dos profissionais, que não conseguem ver um futuro risonho no SNS e que acabam por procurar novas oportunidades.

“Se conseguirmos parar para repensar e integrar as jornadas dos doentes, poderemos evitar o “ping-pong” que acontece muitas vezes entre hospitais e centros de saúde…”

Começamos o ano com mais ULS, com maior aposta nas USF modelo B e nos CRI, a nível hospitalar. Como vê estas estas medidas?

São um bom sinal, porque de uma forma global (e teórica) estes modelos procuram dar mais autonomia às equipas e centrar-se mais nos resultados e valor prestado ao doente. É fundamental que a evolução da avaliação dos resultados transite rapidamente de indicadores de produção (fazer mais), para indicadores de qualidade e valor para o doente (fazer melhor). Estas reformas têm definitivamente esse potencial, mas é fundamental que esta maior autonomia e capacidade organizativa das equipas se concretize, para que os novos modelos tenham sucesso.

As ULS não podem trazer só ganhos pela centralização e internalização de serviços. O seu grande potencial advém das oportunidades que cria para reimaginar os serviços atuais, com o envolvimento hospitalar e dos cuidados de saúde primários, e poder redesenhá-los para que sejam mais centrados no doente. Se conseguirmos parar para repensar e integrar as jornadas dos doentes, poderemos evitar o “ping-pong” que acontece muitas vezes entre hospitais e centros de saúde, para termos jornadas mais fluídas para o doente, em que ele está mais informado e confiante do percurso que faz dentro dos cuidados de saúde, porque sabe que as várias equipas que o acompanham comunicam eficazmente entre si. Contudo, vemos com apreensão a aprovação à pressa deste novo modelo organizacional, sem ter ocorrido um real envolvimento das equipas, que poderá comprometer a sua aplicabilidade e consequentemente a grande transformação prometida. Sem isso, poderá ser só mais uma reforma que fica bem no papel e nos media e que não muda nada na prática.

Que outras considera serem relevantes para os próximos tempos?

São várias as medidas que podem ser tomadas para iniciar e reforçar este trabalho de reinvenção do SNS. Acima de tudo, as questões que se devem colocar, em especial por quem lidera o SNS e as suas instituições, são “Como podemos fazer melhor?” ou “Como podemos encurtar os períodos de espera?”, e não “Como vamos garantir os tempos mínimos de resposta?”. Só com uma visão clara daquilo que se pretende é que o SNS se reinventará.

Um dos aspetos que nos parece crucial para essa melhoria é, em primeiro lugar, o envolvimento dos doentes. Ouvi-los e envolvê-los, assim como as suas famílias e cuidadores, nos vários processos de melhoria dos cuidados parece tão óbvio mas é tão frequentemente esquecido. O que é que se faz que se acha que traz valor, mas na realidade não traz? O que é que não é feito e é verdadeiramente relevante para uma dada comunidade de doentes? Este envolvimento é prioritário, e a avaliação da sua satisfação na avaliação e orçamentação das instituições de saúde poderá ser um caminho a seguir.

Outro aspeto essencial é a valorização do trabalho dos profissionais de saúde, promovendo o seu envolvimento e participação nesta transformação, pois serão eles a implementá-la e são quem melhor sabe o que pode ser feito para melhorar. Os profissionais têm de ser bem tratados, respeitados e motivados, e isso passa não só pelas grelhas salariais, mas também pelas condições de trabalho e melhoria do funcionamento das equipas.

Por fim, deve ser feito um trabalho mais criterioso na seleção e capacitação dos líderes em saúde, quer administrações, quer lideranças clínicas, para que possamos dotar o sistema de pessoas com capacidade de liderança, de gestão e motivação das equipas e visão para um novo futuro para a saúde, assente em constante procura pela melhoria e inovação. Naturalmente, tudo isto deve ser acompanhado por uma maior valorização e reconhecimento do mérito e da qualidade, com iniciativas que promovam e abram portas para projetos de inovação.

“Parece ridículo ou até simples, mas, neste momento, a principal coisa a fazer é dar tempo aos profissionais. Mais tempo para ver e falar com os doentes e famílias, mais tempo para estudar …”

Os profissionais estão desmotivados. Como se consegue mudar esta realidade para que se sintam mais motivados e felizes?

O primeiro passo terá sempre de passar por garantir melhores condições de trabalho e salariais, com diminuição da excessiva carga horária e horas extraordinárias, que é atualmente o garante de um ordenado considerado justo para estes profissionais. Este é o passo básico para começar a reverter a tendência atual, onde cada vez mais profissionais procuram alternativas ao SNS e menos internos escolhem vagas para especialidade ou após terminar a especialização. A realidade é que as expectativas pessoais e profissionais na saúde estão a mudar, e há claramente — e bem — uma maior preocupação com o bem-estar e o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, pelo que as instituições e as equipas têm de se adaptar a isto, e não impor os mesmos costumes na esperança de que tudo se mantenha igual.

Depois, é importante construir uma visão para o futuro da saúde, que vá além da retórica política, que envolva os profissionais e que seja capaz de os convencer que tem potencial para inverter a tendência atual. A aposta em recursos e tecnologia pode ajudar a diminuir o trabalho burocrático e repetitivo dos profissionais, permitindo que se foquem no mais importante: prestação de cuidados de excelência. Para além disso, devem também ser criados espaços e disponibilizados recursos para auxiliar a implementação de novas ideias e projetos, facilitando assim a melhoria de cuidados, sem que sejam obstruídos por burocracia e hierarquias.

A Saúde está a mudar também no que diz respeito à tecnologia. Que competências devem ser dadas aos profissionais de saúde para que sejam bons técnica e humanamente?

Parece ridículo ou até simples, mas, neste momento, a principal coisa a fazer é dar tempo aos profissionais. Mais tempo para ver e falar com os doentes e famílias, mais tempo para estudar, atualizarem-se e mais tempo para descobrir e implementar novas tecnologias e procedimentos. Quando tudo é feito a correr, em metade do tempo que devia, é inevitável que a qualidade dos cuidados sofra. Por último, é também importante que a tecnologia procure de facto aliviar o trabalho destes profissionais, e não ser mais um passo sem valor no processo.

MJG

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