Carla Rêgo >> Vitamina D: O aumento do sedentarismo associado a um estilo de vida com menos actividade ao ar livre “ludibriou” a genética
Pediatra do HCUF Porto. Professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e da Universidade Católica. Investigadora do ProNutri, CINTESIS
Vitamina D: o que é e qual a sua importância para o organismo?
A Vitamina D (vitamina D) foi identificada há cerca de 90 anos. Muito embora chamada de vitamina, admite-se que a vitamina D funcione como uma pro-hormona. Isto significa que desempenha outras funções no organismo humano, para além da simples função de vitamina.
É obtida maioritariamente (90%) por síntese endógena (cutânea) e numa pequena percentagem provém da ingestão alimentar (10%).
É essencial para a remodelação esquelética e para o equilíbrio do metabolismo do fósforo e do cálcio no organismo humano (nomeadamente através da regulação da absorção de cálcio ao nível da mucosa intestinal e da sua excreção renal), mas, por existirem receptores para esta vitamina (RVD) em células de quase todos os órgãos, assume-se que ela seja importante para o normal funcionamento de pelo menos 5 sistemas fisiológicos: o muscular, o ginecológico, o imunológico, o neurológico e o cardiovascular. Finalmente, pela sua interferência no ciclo celular, atribui-se à vitD uma interferência no processo oncogénico (ocorrência de cancro).
Torna-se pois fácil perceber que a adequação dos níveis circulantes de vitamina D é determinante para a saúde em geral.
Há mais do que um tipo de vitamina D?
Efectivamente não existe apenas uma vitamina D (vitamina D), pois este nome é genericamente dado a um grupo de compostos lipossolúveis (armazenam-se na gordura corporal).
A 25-hidroxivitamina D (25OHD ou calcidiol) é a forma inativa da vitamina D, sendo ativada no rim em 1,25-dihidroxivitamina D (1,25OHD2 ou calcitriol). A vitamina D3 (ou colecalciferol) e a vitamina D2 (ou ergocalciferol) são as mais importantes. Quando se pretende avaliar o status de vitamina D utilizam-se os níveis sanguíneos da 25OHD, pelo facto deste biomarcador apresentar concentrações e uma semivida (tempo de duração na circulação) superior à forma activa, bem como maior sensibilidade a variações.
Como é obtida?
A vitD é conhecida como a “vitamina do sol”. Efectivamente a espécie humana está geneticamente programada para a produzir através da pele, na sequência da sua exposição à radiação solar UV. Cerca de 90% da vitamina D que o organismo necessita para o seu bom funcionamento é sintetizado desta forma, sendo os restantes 10% provenientes de uma alimentação variada e equilibrada.
Daqui se depreende a importância do estilo de vida na adequação dos níveis de vitamina D, pois uma alimentação variada e equilibrada, com a ingestão ocasional de alimentos ricos em vitamina D e acrescida de um estilo de vida activo, com uma exposição solar diária (e respeitadora dos cuidados relativamente à saúde cutânea) garantirão, num individuo saudável, a manutenção de níveis adequados de vitamina D.
As necessidades em vitamina D variam em função da idade?
Sim, as doses recomendadas para ingestão alimentar diária de vitamina D variam de acordo com a idade. Muito embora existam recomendações emanadas por diferentes comités, efectivamente não existem grandes diferenças entre elas.
De uma forma genérica, durante o 1º ano de vida deve ser realizada suplementação universal na dose de 400 UI /dia. Dos 1- 70 anos deve ser garantida uma ingesta diária de 600 – 800 UI/dia e a partir dos 70 anos de 800 UI /d.
Importa no entanto, ter em conta as considerações particulares de 2 comités:
- Em 2011, a Endocrine Society(ES) publicou recomendações relativamente à ingestão de vitamina D (e de cálcio) para todas as idades. Sendo consensual a suplementação universal numa dose de 400 UI/dia durante o 1º ano de vida, a dose mínima de ingestão diária recomendada foi de 600 UI dos 1-70 anos e de 800 UI a partir dessa idade. Refere este organismo científico no entanto que a dose diária necessária para que os níveis de 25OHD sejam superiores a 30 ng/ml poderá ir até às 1 000UI/dia dos 1-18 anos e às 1 500 – 2 000 UI/d a partir dessa idade. Um grupo recebe especial atenção neste documento: a mulher grávida e a lactante. No caso da primeira, esta deverá garantir a ingesta de uma dose diária de 600 UI, podendo necessitar de 1 500 – 2 000 UI /dia, valores estes recomendados, no mínimo, para a mulher em fase de lactação de forma a garantir a manutenção do seu status de vitamina D bem como satisfazer as necessidades do recém-nascido/lactente;
- Em 2013 a European Society of Paediatric Gastroenteology Hepathology and Nutrition (ESPGHAN) em completa concordância com a Academia Americana de Pediatria (AAP) e com a ES, recomenda a suplementação universal com 400 UI/dia durante o 1º ano. Mas neste documento julgo relevante realçar o alerta lançado relativamente à importância de se detectar, durante a idade pediátrica, grupos de risco de carência em vitD, ponderando nesses casos estar recomendada a suplementação nos meses de outono e inverno, com a dose de 400UI/dia, em associação à promoção de um estilo de vida e a hábitos alimentares saudáveis.
Quais as consequências de défice de vitamina D?
Importa antes de mais referir que as consequências dependerão, em grande parte, da fase da vida em que ocorra o défice bem como da duração e da gravidade do mesmo.
Assim, se este acontecer durante a gestação, ou seja, caso a mulher grávida não apresente adequação dos seus níveis de vitamina D, o feto terá maior probabilidade de apresentar alterações de crescimento, haverá maior risco de complicações no parto e poderá existir um compromisso da massa óssea do recém-nascido com repercussões irreversíveis para a vida.
Se o défice ocorrer durante a idade pediátrica, poderá haver compromisso da formação de massa óssea. De acordo com a gravidade e a duração do défice, este compromisso poderá apresentar diferentes expressões, desde situações graves e com expressão clinica (raquitismo) até situações que não são sintomáticas nesta fase da vida mas apresentam manifestação de doença na idade adulta (osteoporose). Efectivamente a massa óssea constrói-se até aos 18 – 20 anos, altura em que esta atinge o seu pico, pelo que será fácil concluir que a idade pediátrica é o período da vida em que se deve apostar fortemente na formação de uma boa massa óssea e esta depende, entre outros, de níveis séricos adequados de vitamina D e de cálcio.
À medida que a idade vai avançando, as repercussões de um estado deficitário em vitamina D, para além da saúde óssea, poderão estar associadas a compromisso da saúde mental, cardiovascular, inflamatória, muscular, ginecológica e neoplásica. Poderá pois assumir-se que as manifestações de doença na dependência de défices graves em vitamina D, na idade adulta, poderão resultar em doença em todos os órgãos e sistemas.
Quais os grupos particularmente vulneráveis a défice de Vitamina D?
- Mulheres grávidas
- Lactentes (1º ano de vida)
- Crianças ou adolescentes com pouca exposição solar, particularmente durante os meses de outono e inverno
- Pessoas de pele escura (necessitam de 3 a 5 vezes mais tempo de exposição para uma produção semelhante à de um indivíduo de pele clara)
- Viver em latitudes norte (35 a 45 graus)
- Idade (observa-se uma redução de 75% da capacidade de síntese após os 70 anos)
- Uso abusivo de protectores solares, pois interferem com a produção cutânea de vitamina D. Assim, deve ser prudentemente balanceada a sua utilização visando a protecção e a redução do risco de envelhecimento cutâneo e de cancro de pele mas garantindo a síntese adequada desta “vitamina do sol”. A escolha das horas e do tempo de exposição solar são determinantes
- Indivíduos com obesidade (por provável sequestração no tecido adiposo)
- Indivíduos com doenças renais ou hepáticas, doenças que comprometam a absorção intestinal de nutrientes, doenças endócrinas que cursem com alterações hormonais que interfiram com o metabolismo do cálcio e ainda crianças/adolescentes sujeitos a medicação frequente com anti convulsivantes, corticóides ou anti-retrovirais.
Num país como Portugal, com bastante exposição solar, como se explica a existência de défice desta vitamina?
A insuficiência em vitamina D afeta cerca de 50% da população mundial, transversalmente às diferentes faixas etárias, estimando-se que mais de 1 bilião de indivíduos apresentam deficiência ou insuficiência nesta vitamina. Em 2011, os resultados de um estudo multinacional europeu sobre ingesta alimentar, concluiu que 100% na população adulta (entre os 19 e os 64 anos de idade) e idosa (acima dos 64 anos) portuguesa apresenta um consumo inadequado de vitamina D.
Já a prevalência de deficiência em crianças e adolescentes varia entre 20 a 50%, considerando vários países da Europa, os E.U.A., o Canadá e a China. Em Portugal são escassos os trabalhos que permitam caracterizar o status da vitamina D na população, particularmente na população pediátrica, mas um trabalho publicado em 2013 (APP), que envolveu crianças e adolescentes (2-18 anos) saudáveis a residir no norte do país, demonstra que 92,5% apresenta um status de vitamina D indicativo de insuficiência, dos quais 47,8% apresenta critérios de deficiência. Mais, os autores encontraram uma prevalência de 4,7% de compromisso de massa óssea para a idade.
Portugal, tal como a maioria das sociedades desenvolvidas, registou nas últimas décadas uma drástica mudança do estilo de vida da sua população. O aumento do sedentarismo associado a um estilo de vida com menos actividade ao ar livre “ludibriou” a genética. O andar a pé para as actividades diárias aliado ao trabalho ao ar livre característico de há 30 – 40 anos atrás, deixou de ser a realidade actual para a maioria da população. Ora, estando a nossa genética programada para que a síntese cutânea por exposição solar seja responsável pela produção de cerca de 90% da vitD necessária à saúde humana, é fácil perceber o risco de ocorrência de défice nesta vitamina, numa franja considerável da população portuguesa.
Entretanto, para além do estilo de vida, há ainda aspectos geográficos a considerar. Efectivamente “somos um país de sol” mas, as zonas terrestres com uma latitude norte entre 35 – 45 graus, estão associados a menor eficácia da produção cutânea de vitamina D. Ora, considerando no território nacional um ponto ao norte (a cidade do Porto) e outro ao sul (o Algarve), o primeiro apresenta uma latitude 41 graus norte e o segundo de 37 graus norte, o que significa que o nosso país “soalheiro” não se encontra na “melhor localização” para uma maior rentabilização da radiação solar no que respeita à produção de vitamina D.
Quais os principais sintomas do défice de Vitamina D?
Para a idade pediátrica, a Academia Americana de Pediatria (AAP, 2008) e a European Society of Paediatric Gastroenterology Hephatology and Nutrition (ESPGHAN, 2013) recomendam, como ponto de corte para a caracterização de suficiência em vitD, uma concentração sérica de 25OHD igual ou superior a 20 ng/mL (ou 50mmol/L) enquanto concentrações inferiores a 10 ng/mL são indicativas de deficiência grave, tendo por base a salvaguarda da saúde óssea. O Institute of Medicine (IOM) e a The Endocrine Society (TES) recomendam valores de referenciação para toda a população e a TES indica como critério de insuficiência um valor de 21-29ng/mL.
Existem situações de resistência aos efeitos da Vitamina D?
Em indivíduos saudáveis não existem situações de resistência à vitamina D. No entanto podem existir situações de hipersensibilidade, na dependência de doença endócrina, nomeadamente das glândulas paratiróides. A situação patológica mais comum é o hiperparatiroidismo primário, que cursa com um aumento da reabsorção óssea e a da absorção intestinal de cálcio. Nestes indivíduos a ingestão de vitamina D aumenta os níveis de cálcio no sangue resultante da ligação que ocorre entre ingestão de vitamina D e a produção de 1,25 (OH)2 D. Também em outros casos de doenças que cursem com hipercalcemia (ex: tuberculose ou linfoma), é recomendado reduzir ou mesmo eliminar qualquer tipo de fonte dietética ou farmacológica de vitamina D.
A que especialista se deve recorrer em caso de sintomatologia indiciadora de défice?
A vigilância da saúde da população está a cargo do médico assistente, seja o médico de medicina geral e familiar, o pediatra ou o médico de medicina interna.
Cabe a qualquer um destes profissionais decidir se um determinado individuo poderá ter risco de apresentar uma situação deficitária de vitamina D e, nesse caso, solicitar os exames que lhe permitam esclarecer a suspeição. Caso haja défice, qualquer um destes profissionais estará habilitado a tratar a situação, da forma mais adequada e personalizada.
Como repor os níveis adequados de vitamina D?
O défice em vitamina D, como exposto, resulta fundamentalmente de mudanças comportamentais. Assim a sua correcção deverá implicar, antes de mais, uma mudança do estilo de vida, quer no que respeita à alimentação quer à actividade física ao ar livre.
A suplementação (gotas ou comprimidos de vitamina D) deverá resultar de uma indicação médica, tendo por base um diagnóstico laboratorial e a incapacidade de alterar os hábitos de vida garantes de uma adequada síntese cutânea.
Quais as recomendações dietéticas?
Deve realizar-se uma dieta variada e equilibrada, que inclua alimentos ricos em vitamina D, o que significa o consumo ocasional de peixe gordo (salmão, sardinha, arenque, cavala …), fígado de peixe, gema de ovo, cogumelos e lácteos (leite, iogurte e queijo). O reconhecimento da importância da vitamina D no crescimento e na saúde óssea, levou a que alguns alimentos infantis sejam fortificados, tais como o leite e as farinhas de cereais e que alguns países da europa suplementem alguns alimentos para a população em geral (cereais, pão, sumos, margarinas).
Quais as vantagens da suplementação diária nos diversos grupos etários em que tal se justifica?
A suplementação farmacológica só está indicada em situações de comprovado défice e deverá estar sempre associada à mudança do estilo de vida. Em situações de normalidade dos valores séricos não existem benefícios e poderão existir riscos, caso esta seja realizada.
Por outro lado importa tornar claro que não existe robustez científica que suporte a recomendação para a suplementação profiláctica (preventiva) com vitamina D na prevenção de patologias como o cancro, a doença cardiovascular ou a diabetes.
Existe suporte científico (artigos) que suportem a suplementação diária?
Em indivíduos saudáveis, a suplementação farmacológica apenas deve ocorrer caso se constate haver carência/défice e/ou um estilo de vida “de risco” não compatível com um aporte diário adequado.
Assim, os critérios para suplementação são baseados na quantificação da ingesta diária e/ou na confirmação analítica de défice e a decisão deverá ser da responsabilidade do médico assistente.
Como referido, a recomendação para uma suplementação universal apenas é suportada pela literatura durante o 1º ano de vida. Efectivamente todos os lactentes deverão efetuar suplementação com vitamina D, numa dose diária de 400 UI /dia (AAP). Caso não suplementem, a lactante deve garantir uma ingestão diária de vitamina D de 4 000 – 6 000 UI. A dificuldade em manter estes níveis de ingestão diária acrescida das repercussões para a saúde de uma situação de défice em vitamina D levam a, por segurança, recomendar a suplementação universal nesta fase da vida.
Durante o resto da vida, nomeadamente idade pediátrica e adulta, a suplementação farmacológica deve ser realizada em grupos de risco, excepto para o idoso (> 60 – 70 anos) em que esta deverá ser de novo equacionada, de uma forma universal.
Importa ainda referir que existem situações patológicas em que está recomendada a suplementação, atendendo à dificuldade em serem atingidas as doses recomendadas apenas com a ingesta alimentar. De entre estas há a destacar: crianças ou adultos obesos ou a utilizar anticonvulsivantes, glicocorticoides, antifúngicos ou anti-retrovirais (tratamento para o HIV/SIDA). Estes duplicam, ou mesmo triplicam, as suas necessidades diárias em vitamina D, pelo que se deverá considerar a necessidade de suplementação farmacológica.
Em que situações pode ocorrer toxicidade de Vitamina D? Quais os sinais e sintomas?
A toxicidade à vitamina D só ocorre na dependência da suplementação farmacológica e nunca na sequência da alimentação ou do estilo de vida (exposição solar).
Em situações que é recomendada a suplementação, se forem respeitadas as doses recomendadas, não existe risco de toxicidade. No entanto, a ingestão por crianças/adolescentes de doses diárias superiores a 1 000UI e por adultos de doses superiores às 5 000 UI, resulta em toxicidade. De entre os sintomas há a referir a anorexia (falta de apetite), desidratação, fraqueza muscular, enxaquecas, náuseas, vómitos, poliúria (aumento do débito diário de urina) e polidipsia (sede).
Como tratar o défice de vitamina D?
O défice de vitamina D trata-se sempre de 2 formas: com mudança dos hábitos de vida e suplementação farmacológica com vitamina D.
Relativamente aos hábitos de vida estes devem ter em conta a alimentação bem como a promoção de um estilo de vida fisicamente activo e o mais ao ar livre possível (salvaguardando as recomendações relativamente à protecção solar em horas de maior risco cutâneo).
Relativamente à terapêutica farmacológica (suplementação), qualquer das isoformas de vitamina D pode ser usada no tratamento (D2 ou D3), sendo o tempo e a dose definidos pelo médico assistente e decididos caso a caso.
MMM