29 Mar, 2024

“Temos cada vez mais evidências de que os desajustes da flora intestinal se relacionam com várias doenças”

De acordo com Conceição Calhau, os casos em que existe sintomatologia que remete para desequilíbrios na flora intestinal devem ser tratados, de modo a apoiar o tratamento de qualquer outra doença que possa coexistir. Em entrevista, a professora catedrática da NOVA Medical School e nutricionista especialista em Nutrição Clínica, explica a relação da alimentação com a saúde do intestino e refere em que casos deve ser feita suplementação de pre e/ou probióticos.

Como funciona a microbiota intestinal?
A microbiota intestinal funciona como um órgão endócrino e neuroendócrino. É composta por microrganismos que interagem com as nossas células e com o organismo e que são importantes, por exemplo, para o processo digestivo. Enquanto espécie humana evoluímos porque sempre tivemos ajuda destes microrganismos para extrair nutrientes dos alimentos.

Muitas vezes ouvimos dizer que o intestino é um segundo cérebro, mas não é um segundo. Ambos são o mesmo cérebro devido à comunicação premium entre cérebro e intestino. O intestino é responsável por comandar a informação que vai ser enviada para todo o organismo. Se a pessoa estiver em jejum, os primeiros a sentir são estes microrganismos. O microbiota intestinal percebe que não existe a entrada de alimentos e vai comunicar com o intestino, que, por sua vez, produz uma proteína que vai até ao tecido adiposo e que faz com que a gordura que se encontre em circulação no sangue não tenha como prioridade ser acumulada no tecido adiposo, uma vez que não existe comida.

Em casos em que as pessoas referem engordar mesmo não comendo, a prioridade metabólica está centrada em acumular gordura no tecido adiposo, uma vez que falta a comunicação da informação dos microrganismos.

“Quando apresentamos alterações na microbiota intestinal o processo digestivo fica comprometido.”

 

Qual é a relação da alimentação saudável com a saúde do intestino?
Existem diversas variáveis capazes de influenciar a saúde do intestino, entre elas os medicamentos, o stress, a atividade física e a alimentação. Esta última é o fator mais importante, uma vez que o nosso padrão alimentar é também o alimento dos microrganismos presentes no intestino.

Em casos de alimentação pobre em hortofrutícolas e leguminosas, rica em hidratos de carbono, açúcar e proteína animal, existe uma seleção de microrganismos que se alimentam com este tipo de produtos. Assim, a alimentação é capaz de influenciar a qualidade e quantidade de microrganismos, que são muito diversos. Hoje em dia conseguimos perceber que a população foi perdendo diversidade, porque vamos dando de comer quase sempre aos mesmos microrganismos, e os que não têm nutrientes com que se alimentar vão-se perdendo.

Se existe um padrão alimentar diversificado e adesão à dieta mediterrânica a probabilidade de existir um microbiota saudável, em pleno funcionamento e equilibrado, é muito maior do que se o padrão alimentar for mais típico da dieta ocidental, rica em gordura saturada e açúcar.

Um outro ingrediente importante, e que deveria ser ingerido duas a três vezes por dia, são os alimentos fermentados, seja kombucha, iorgurte ou kefir. No fundo, alimentos probióticos, que estão associados à saúde. Com isto, a par de uma dieta mediterrânica, as pessoas conseguem introduzir bons microrganismos e ao mesmo tempo, diariamente, garantir que estes vivem e que se estabilizam no intestino. Em síntese, existem dois ingredientes importantes: o pre e o probiótico. O prebiótico diz respeito à fibra e o probiótico aos alimentos fermentados.

 

Quais são as consequências de um desequilíbrio da flora intestinal para o resto do organismo?
Atualmente, temos cerca de 15 anos de maior investigação nesta área. Neste momento sabemos que os desequilíbrios da microbiota intestinal, ou seja, a disbiose, está associada a muitas patologias, desde obesidade, resistência à insulina (e por consequência diabetes), cancro, quer seja do cólon, ou até mesmo cancro da mama ou da próstata. Está ainda associado a doença cardiovascular, doença mental (desde a depressão até ao espetro do autismo), não esquecendo as doenças autoimunes, como artrite reumatoide e psoríase.

As doenças autoimunes são um exemplo da importância das bactérias no nosso sistema imunitário. O ser humano apresenta muitas áreas de contacto no seu corpo com o meio exterior, sendo que o intestino apresenta uma grande presença do sistema imunitário e as bactérias comunicam com este. Se a comunicação começar a não ser a melhor o sistema imunitário começa a degradar-se. Assim, tem de aprender o que é e o que não é uma ameaça, o que é do próprio e o que não é. O que o sistema imunitário começa a reconhecer como não sendo seu é o que está mais envolvido com as doenças autoimunes, uma vez que o organismo começa a produzir anticorpos relativamente ao mesmo. Além disso, o intestino pode também começar a falhar no sentido em que não deteta células diferentes, como as de um cancro. Temos cada vez mais evidências científicas de que quando existe um desajuste da flora intestinal isto se relaciona com várias doenças.

Outro exemplo que tem alguma prevalência e muita atualidade é a questão da endometriose na mulher. Muitas vezes estas situações apresentam sintomas intestinais, mas estes vão-se negligenciando e o foco da atenção é apenas na endometriose em si. Temos, cada vez mais, de adotar uma abordagem mais complexa. Não tratamos doenças, tratamos o doente.

“Quando existe sintomatologia claramente identificada é importante tratar o intestino para ajudar no tratamento final de todas as restantes doenças.”

Em que casos deve ser feita a suplementação de pre ou probióticos?

Cada vez mais é necessário fazer a distinção de o que é um probiótico, pois no mercado atual existem vários muito diferentes. Tanto existem probióticos sobre os quais existe muita investigação clínica e evidência científica, como probióticos que mal sabemos o que contêm. A investigação clínica tem permitido que hajam probióticos direcionados para determinados quadros, seja para o síndrome de intestino irritável, obesidade, risco cardiovascular, etc. Cada vez temos mais informação de que, em determinada situação, x ou y probiótico é o mais adequado.

Quando falamos em suplementação, seja em que contexto for, significa que existe uma deficiência que precisamos de colmatar. Sou plenamente a favor da suplementação em situações diagnosticadas e justificadas. Sou contra à toma de probióticos injustificada, sem fundamento, apenas na lógica do princípio de que ‘se um faz bem, 10 faz melhor’. Se o meu ecossistema intestinal estiver em equilíbrio e eu introduzir mais microrganismos desnecessários posso correr o risco de não ter um efeito benéfico. Passo a citar Paracelsus, o pai da Toxicologia, que dizia que “a dose faz o veneno”.

Quanto aos prebióticos, depende muito daquilo que é a situação clínica da pessoa. Se ingerir 25 a 30 gramas de fibra por dia na forma de hortofrutícolas ou leguminosas, se o trânsito intestinal é regular, se tem fezes na escala de Bristol de tipo 4, eventualmente não há necessidade. Por outro lado, se não existe consumo de fibra e se estamos a falar de uma pessoa obstipada, aí devemos falar numa intervenção aguda em que é necessário suplementar fibra, sendo que também precisamos de saber de que tipo. Pode ser uma fibra parcialmente hidrolisada que não fermenta, solúvel, insolúvel, não é tudo o mesmo.

“É importante existir uma intervenção direcionada e com conhecimento científico associado.”

 

CG

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