5 Abr, 2024

Saúde e Segurança Social. Articulação reduz burocracia e permite ser-se médico de família

“A relação entre a Medicina Geral e Familiar e a Segurança Social: Atualidade e possíveis melhorias” foi o tema de uma das sessões da tarde de ontem. Em discussão esteve o problema da burocracia e as últimas alterações legislativas que retiraram a obrigatoriedade de ser sempre o médico de família a emitir a certificação de incapacidade temporária (CIT).

A importância da relação entre a Medicina Geral e Familiar (MGF) e a Segurança Social não deixou quaisquer dúvidas ou não estivessem ambos os setores interligados, direta ou indiretamente, desde sempre.

O problema é a forma como se estabelece, atualmente, esta ligação. Para Inês Rosendo, especialista em MGF na USF Coimbra Centro, ambas as áreas se têm desenvolvido “quase de costas viradas”.  Na sua opinião, como os temas e  os problemas de ambos os setores são comuns, deveria haver uma melhor articulação. “Deveria existir uma interface comum para partilha de informação clínica, que facilitasse a troca da mesma e não obrigasse a criar procedimentos e relatórios redundantes”, defendeu em entrevista ao SaúdeOnline.

Questionada sobre o impacto da burocracia na prática clínica, a médica criticou o facto de esta afetar “de forma muito intensa” o seu trabalho, porque não lhe permite ter tempo para o que é essencial em consulta: estar com as pessoas.  “Tira tempo ao que sabemos fazer melhor, ou seja, prestar cuidados de proximidade e de longitudinalidade, gerir a complexidade e  a multimorbilidade e apostar em cuidados centrados na pessoa.”

E isso mesmo demonstra um estudo, publicado no Bristish Medical Journal ((Granja M, Ponte C, Cavadas LF. BMJ Open 2014), segundo o qual 33,4% do dia de trabalho de um médico de família é passado em tarefas não assistenciais. E, segundo Inês Rosendo, esta investigação não teve em conta  a “muita burocracia” das próprias consultas. “Não é um problema exclusivo de Portugal, mas certamente que diminuir a burocracia levaria a mais consultas (e logo mais utentes com médico de família e menos pessoas nos serviços de urgência), a melhor qualidade e a maior satisfação quer por parte dos utentes quer dos profissionais”, reitera.

O mesmo pensa Daniel Beirão, especialista em MGF, coordenador médico adjunto da Segurança Social do Porto, membro do Conselho Médico Nacional da Segurança Social e presidente do Colégio da Competência em Peritagem Médica da Segurança Social da Ordem dos Médicos.   “A burocracia excessiva pode ter um impacto significativo na prática clínica do médico de MGF, muitas vezes prolongando os tempos de espera entre doentes e reduzindo o tempo disponível para a consulta.”

Para o responsável,  esta realidade pode afetar “negativamente a relação médico-paciente, uma pedra angular do cuidado eficaz na MGF, limitando assim o tratamento personalizado”. Para o especialista, a relação entre ambos os setores pode ser “complexa e, por vezes, desafiadora, exigindo uma constante adaptação e melhoria para atender às necessidades dos doentes/beneficiários”.

Alterações Legislativas de 1 de março e a redução da burocracia

Em discussão estiveram, inevitavelmente, as alterações legislativas de 1 de março deste ano, referentes aos certificados de incapacidade. Até então, as baixas médicas apenas poderiam ser emitidas pelos médicos de família, mas atualmente os doentes podem ter acesso às mesmas nas urgências e também em hospitais privados ou do setor social. Os prazos para determinadas patologias, como é o caso da doença oncológica, também foram prolongados.

Inês Rosendo vê estas mudanças como uma mais-valia, mesmo que ainda não se esteja a 100% na sua aplicabilidade. “Foram avanços positivos que já eram pedidos há muitos anos, mas ainda se está longe do que é necessário.”

Daniel Beirão também considera que esta legislação é importante e refere mesmo é “um passo positivo na direção de uma maior integração e colaboração entre a MGF e a Segurança Social”. No entanto, alertou, “é crucial que essas medidas sejam implementadas de forma célere para reduzir a burocracia, melhorar o acesso aos cuidados de saúde e garantir que os profissionais de saúde possam dedicar-se ao que é mais importante: cuidar dos doentes”. “É igualmente importante que os médicos de MGF conheçam o modelo atual da avaliação da Peritagem Médica na Segurança Social para que consigam proteger os seus utentes”, especificou.

Para que a articulação entre a Saúde e a Segurança Social possa evoluir da melhor forma, não basta a legislação. O uso de ferramentas digitais torna-se, nos dias de hoje, obrigatória. Ambos os oradores concordam com o facto de a tecnologia poder ter um papel-chave nesta interface. Entre as vantagens está, segundo a médica, a não multiplicação do trabalho. “O acesso às mesmas ferramentas deverá também facilitar o contacto entre colegas das duas instituições para esclarecimento de dúvidas. E, claro, também faria todo o sentido facilitar a passagem de CIT desmaterializados e com a validade que os clínicos acharem mais adequada”, defendeu.

Para o coordenador médico adjunto da Segurança Social do Porto, o mundo digital tem o potencial de “transformar a relação entre a Saúde e a Segurança Social, facilitando “uma comunicação mais eficiente e um acesso mais rápido às informações necessárias”. Na sua perspetiva, poderão contribuir para a diminuição da burocracia, permitindo que “os médicos de MGF se concentrem mais na prestação de cuidados de saúde de qualidade, além de proporcionar aos doentes um acesso mais fácil e transparente aos serviços”. Apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer, o clínico realçou que “é importante perceber que esta adoção digital está a ser feita”.

No final da sessão, que foi moderada por Carlos Mestre, especialista em MGF na USF Cartaxo Terra Viva e membro da Direção Nacional da APMGF, ficou a certeza de que ainda há um longo caminho a percorrer. Mas, também, que a articulação entre Saúde e Segurança Social fazem toda a diferença na prestação de cuidados.

 

Maria João Garcia

 

 

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