18 Dez, 2023

Nuno Jacinto. “Nunca foi tão necessário dignificar e valorizar a Medicina Geral e Familiar”

Nuno Jacinto foi reeleito presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). Em entrevista ao SaúdeOnline garante um trabalho de continuidade na Associação e realça os desafios que a especialidade enfrenta na atual crise do SNS. É o caso da nova regulamentação das unidades de saúde familiar e o modelo unidade local de saúde.

Foi reeleito em novembro para um segundo mandato. Quais os principais objetivos da Direção?

Este é um mandato de continuidade, seguindo a linha do triénio anterior. Aliás, mantém-se a maioria dos membros (Direção, Conselho Fiscal, Assembleia Geral) . A nossa ideia é essencialmente consolidar aquilo que se foi construindo entre 2021 e 2023, sempre com o propósito de sermos cada vez mais a voz de todos os médicos de família. Mas também queremos fazer crescer a APMGF e a Medicina Geral e Familiar (MGF), mantendo esta vertente socioprofissional, mas também a técnico-científica. Exemplo disso é o Encontro Nacional, o evento do Grupo de Estudos – que se realizou pela primeira vez em novembro passado -, entre outros. Acima de tudo, queremos que a MGF seja a base do sistema nacional de saúde, e em particular do Serviço Nacional de Saúde (SNS), porque ainda esse desígnio ainda está por acontecer. A MGF deve ser cada vez mais forte, preponderante, não se esquecendo obviamente a sua qualidade e segurança.

 

O que gostaria de destacar do último triénio?

Destaco, claramente, os eventos científicos como o Encontro Nacional que está em grande crescimento e que é o evento central da MGF em Portugal, o do Grupo de Estudos da APMG, no qual continuaremos a apostar, e o Encontro Nacional dos Internos. Ainda no âmbito deste tipo de iniciativas, realço a realização do WONCA 2025, em Lisboa, o que é o grande marco deste novo triénio. Poder realizar o WONCA em Portugal é um motivo de grande orgulho e vai com certeza marcar o panorama da saúde nacional e não apenas da MGF. E toda a atividade socioprofissional junto da Tutela, de associações, propondo inclusive soluções; acrescento o lançamento do livro “O Novo Futuro”.

 

A realização do evento dos Grupos de Estudo foi algo ‘fora da caixa’?

Sim! Temos 24 grupos de estudo ativos na APMGF, face à aposta que temos feito nos últimos anos – mesmo em anteriores direções. Cada um dos grupos tem crescido muito e é importante dar-lhes espaço, para poderem mostrar a sua criatividade e dinamismo. Este ano testámos o modelo e felizmente o balanço é muito positivo, com um sessões conjuntas e formações feitas à medida de cada participante. Já estamos a trabalhar no de 2024, juntando o Encontro de Internos para maximizar a presença de todos e facilitando também o calendário quer dos mais novos quer dos mais velhos.

“O problema é sempre o mesmo: não nos sentimos valorizados nem respeitados. Mesmo após a pandemia, em que tivemos 3 anos de trabalho intenso e árduo”

A APMGF tem um novo grupo de estudos: Pequena Cirurgia. Porquê esta aposta?

Queremos aprofundar o conhecimento nesta área, quiçá fomentando até uma maior aposta na Pequena Cirurgia, já que nem todas as unidades têm condições para tal. É um caminho que ainda está muito no início, mas no qual se deve apostar, porque o médico de família também poderá resolver várias situações sem recurso ao hospital. Evita-se assim a sobrecarga de trabalho dos colegas do hospital e, simultaneamente, permite-se uma maior proximidade entre todos.

 

Quando diz que a nova Direção quer consolidar o papel da MGF, pode-se dizer que esse desígnio faz mais que nunca sentido face à realidade atual do SNS?

Sem dúvida! O problema é sempre o mesmo: não nos sentimos valorizados nem respeitados. Mesmo após a pandemia, em que tivemos 3 anos de trabalho intenso e árduo, continua-se  a não dar a devida atenção ao papel do médico de família. Aliás, chegou-se a pensar em substituir-nos por médicos não especialistas …

“O problema não é a MGF enquanto ramo da Medicina, mas, sim, as condições de trabalho que são oferecidas. Os mais novos não se sentem atraídos. Isto é muito, muito, preocupante…”

E neste momento a MGF é das especialidades com maior número de vagas em branco…

Já não é fácil reter os recém-especialistas e os médicos no SNS. E agora já nem sequer os internos… O problema não é a MGF enquanto ramo da Medicina, mas, sim, as condições de trabalho que são oferecidas. Os mais novos não se sentem atraídos. Isto é muito, muito, preocupante, porque vamos ter menos internos na especialidade, menos estímulo para as equipas e menos jovens médicos de família quando são tão essenciais. Nunca como hoje foi tão necessário dignificar e valorizar a MGF!

 

Os mais novos estão a optar mais pela emigração ou pelo setor privado?

Provavelmente, mas o pior é que nem sequer se está a ponderar fazer uma especialidade. Muitos deles deverão ficar, eventualmente, a contratos de prestação de serviços enquanto esperam por novas vagas, mais apelativas. E alguns até poderão ter outras saídas como indústria farmacêutica, entre outras. São várias as opções, porque temos uma formação de qualidade. Mas é preocupante ver que há vagas por preencher em especialidades tão importantes como a MGF ou a Medicina Interna. Esta situação vai com certeza comprometer a resposta do SNS.

 

Não será também uma mudança geracional, ou seja, já não é taxativo que o percurso do médico tem de passar sempre pelo SNS, nem que seja nos primeiros anos?

Sim, é verdade. Essa ideia perdeu-se com todas as vantagens e desvantagens subjacentes. A grande questão é nem sequer se pensar em fazer a especialidade. Na MGF, o internato é sempre no SNS. Ter especialidade é algo extremamente crucial para se apostar na formação, na diferenciação dos médicos. A desilusão com tudo o que se passa é muito grande e é preciso corrigir o que se está a fazer menos bem, caso contrário os jovens vão continuar a fugir. Vamos retroceder, perder colegas em áreas essenciais e destruir a formação de qualidade que temos construído ao longo dos anos. A Tutela também se deveria preocupar com o que está a acontecer…

“… aplicar o modelo ULS a todo o país, com diferentes realidades, tem logo aqui um handicap: como colocar os CSP no centro”

Estão previstas 39 ULS. Faz sentido avançar-se com um modelo em todo o país, quando ainda não existem dados suficientes sobre a sua mais-valia?

Tem existido grande discussão em torno das ULS, inclusive dentro da APMGF. Primeiramente, o modelo ULS, em teoria e nos seus princípios, é praticamente inatacável: integração de cuidados, melhor gestão dos recursos, trabalho em equipa… Tudo isso é positivo, contudo a questão é a forma como as ULS têm sido implementadas ao longo dos anos e é difícil para nós [médicos] acreditar que vai ser diferente com as ULS 2.0.

 

E porquê?

Tem havido uma quase total subserviência, apagamento dos cuidados de saúde primários (CSP) em relação aos cuidados hospitalares e, frequentemente, recorre-se aos CSP para suprir as ineficiências do hospital. Os CSP, a MGF, devem ser o parente rico do sistema e não o parente pobre. Além disso, aplicar o modelo ULS a todo o país, com diferentes realidades, tem logo aqui um handicap: como colocar os CSP no centro. Bragança não é igual a Santarém, nem Lisboa é igual a Faro. Este modelo tem de saber dar resposta a estas diferenças e ainda não temos a certeza se assim será, porque o modelo é muito rígido. Está muito dependente de lideranças, que são importantes, mas não da forma como as mesmas estão previstas nas ULS. Não foram criadas balizas que evitem que tudo dependa da vontade de quem está à frente da ULS. Não parece que haja sequer uma cultura organizacional. Tememos mesmo que a MGF seja mais uma vez relegada para segundo plano e colocada, inclusive, em posição de perder alguma diferenciação e que depois andemos ao sabor de cada conselho de administração, de cada Governo. Não recusamos o modelo ULS à partida, mas temos muitas dúvidas quanto à sua aplicação.

 

Mesmo havendo um diretor clínico dos CSP?

Existir um diretor clínico é absolutamente essencial e foi uma mudança importante. Todavia, o decreto-lei não deixa claro que essa presença dos CSP seja de facto obrigatória. O que está escrito é que poderá haver até dois diretores clínicos. Não é claro! Em última análise, pode manter-se apenas um diretor clínico. Mesmo que hoje nos digam que não será assim, não estando escrito de forma clara poderemos andar ao sabor de cada liderança. Se houver conhecimento da realidade e consciência da importância dos CSP, mesmo sem diretor clínico, até pode ser que nos oiçam. Mas também poderemos ser apenas uma voz sem força. Esse é um dos nossos receios.

“Este IDE será já em 2024 e pode ser muito penalizador nalguns casos, podendo alterar completamente o foco do trabalho”

Referiu que pode ficar em causa a diferenciação dos profissionais. Com as ULS podem terminar projetos como consultas específicas na área respiratória, paliativa, entre outras?

Vai depender dos objetivos de quem está à frente da ULS. Se se entender que devem apostar em cuidados acessíveis e de proximidade irão mantê-los certamente, para que o hospital fique com os doentes mais complexos. Há outra questão: o orçamento. Se se utilizar os CSP para ‘tapar buracos’ orçamentais, não haverá dinheiro para manter esses projetos. É preciso haver balizas para se assegurar, entre outras coisas, que as verbas alocadas aos CSP são para ficar aí. O mesmo ao nível dos recursos humanos. Pode não acontecer, mas não temos a certeza.

 

A generalização das USF modelo B é vista como “uma lufada de ar fresco”. Apesar da boa notícia, poderá haver situações em que se vai transitar para modelo USF sem as condições necessárias para se trabalhar como tal?

A sua generalização, à partida, é positiva. É algo que se deseja há muito tempo. Não haver mais quotas é importante, mas mesmo assim ficamos aquém do que deveria ser. Todas as unidades que passem a USF modelo B devem ser acompanhadas para que possam trabalhar com todas as condições, nomeadamente com autonomia. Penso que isso irá acontecer, contudo, ainda ficarão de fora muitas unidades que, mesmo cumprindo indicadores, não têm o rácio necessário de profissionais de saúde ou de utentes, sobretudo em locais mais isolados. Isso é muito preocupante, porque essas regiões vão ser ainda mais esquecidas, sendo cada vez menos atrativas.

 

O que pensa do novo regime jurídico das Unidades de Saúde Familiar (USF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 103/2023, de 7 de novembro, que determina que a compensação pelo desempenho é associada a um Índice de Desempenho da Equipa (IDE)?

Esse é outro aspeto. Estas são alterações significativas com a introdução do índice de complexidade das listas de utentes, a partir de 2025, que ainda é uma incógnita para todos, e com o IDE. Este IDE será já em 2024 e pode ser muito penalizador nalguns casos, podendo alterar completamente o foco do trabalho, ou seja, podemos estar a generalizar um modelo que nunca será tão bom como o atual. Pode pôr em causa o foco, a relação entre profissionais na equipa. Parece que houve uma moeda de troca: generalizamos o modelo USF, mas, em troca, liga-se a remuneração dos médicos à prescrição de MCDT e medicamentos.

 

Esta medida não acaba por ser perversa já que a prescrição vai depender também da lista de cada médico?

Sim, pode ser perverso. Antes de mais, enquanto profissionais de saúde no SNS temos que ter rigor e tentar obter valor em saúde, ou seja, o melhor resultado em saúde ao custo mais adequado – que não tem que ser o menor. E temos que o fazer numa quadratura do círculo, como se fosse possível cortar cada tipo ou nível de cuidados às fatias. Ligar a remuneração a MCDT e medicação é muito perverso e perigoso. Quando falamos em cerca de 40 indicadores, estes dois valem 10% cada um, segundo a proposta do Governo. É um peso muito significativo! E com intervalos calculados não sabemos bem no quê: no histórico clínico, na prescrição-padrão, etc. Há unidades que têm mais imigrantes, outros mais idosos, todas têm realidades diferentes. A sensação que se tem é que o Governo não quer admitir que não consegue dar tudo o que é necessário, então relegou essa responsabilidade para os médicos, considerando que se vai gerir de outra forma os MCDT e a medicação. Mas os médicos não vão fazê-lo, porque têm que pensar no doente, têm de cumprir com as boas práticas. E com isso vão, em muitos casos, muito provavelmente pôr em causa indicadores e receber menos remuneração. Ou nos deixam trabalhar com qualidade e rigor científico ou dizem à população que não há dinheiro para tudo.

 

Em última instância pode afetar a relação médico-doente?

Pode, mas não acredito que cheguemos a esse extremo, porque os médicos colocam o bem-estar do doente acima de qualquer questão financeira. Mesmo assim não será fácil, porque ao prescrever determinado medicamento que sabe que faz bem ao doente, pode pôr em causa a remuneração da equipa…

“… é errado dizer-se que os problemas das urgências hospitalares estão na inacessibilidade aos CSP. E porquê? Porque mesmo nas regiões onde a resposta é melhor, como no Norte, os serviços de urgência continuam cheios”

A Dedicação plena é viável tendo em conta a remuneração atual?

No caso dos CSP, a dedicação plena não traz nada de muito novo. Esperava algo mais revolucionário. Nas USF já havia alargamento de listas, horário alargado, inclusive fins de semana e feriados…

 

Relativamente às urgências, há quem defenda que a solução tem que pensar também pela melhoria do acesso aos CSP. Deveria voltar a haver Serviços de Atendimento Permanente (SAP) a nível nacional, abertos durante a noite?

A questão não passará por aí. Primeiro: é errado dizer-se que os problemas das urgências hospitalares estão na inacessibilidade aos CSP. E porquê? Porque mesmo nas regiões onde a resposta é melhor, como no Norte, os serviços de urgência continuam cheios. A maioria dos atendimentos de doença aguda são nos CSP. Em média, por cada doente que entra na urgência temos 3 consultas de doença aguda nos CSP. Obviamente, a situação é diferente onde escasseiam médicos de família. Nesse caso, a porta de entrada é desviada para o hospital. O alargamento do horário já existe em muitas unidades, respondendo à maioria das situações de doença aguda não urgente e não emergente. Os problemas do hospital também estão relacionados com a falta ou dificuldade de resposta dos hospitais de Dia, ou por não existir suficiente apoio domiciliário, etc. Temos um papel importante, mas muitas pessoas vão à urgência porque culturalmente temos a ideia de que a doença aguda é tratada no hospital. Este é um ponto que exige mais educação para a saúde para se mudar este paradigma.

 

Vamos ter um novo Governo. Receia que haja grandes mudanças que possam pôr em causa algumas das medidas aprovadas, nomeadamente a generalização de USF?

Infelizmente, em Portugal temos tendência para a chamada ‘política de terra queimada’, isto é, um Governo toma posse e muda praticamente tudo. Seria importante que os partidos políticos pudessem criar uma espécie de pacto, de compromisso, que permita uma política de saúde para as próximas décadas. Quanto ao novo Governo, seja qual for a cor política, é importante que tenha a capacidade de ouvir os médicos e de implementar as soluções propostas. As que são somente da autoria de políticos costumam dar mau resultado. É preciso ouvir os profissionais e pôr em prática soluções que há muito são desejadas por quem está no terreno. A APMGF espera ser ouvida, porque também queremos apresentar soluções.

 

Num momento de incerteza e desconfiança, que mensagem gostaria de deixar  aos seus colegas?

Apesar de tempos difíceis, temos que continuar a acreditar na nossa especialidade, que deve ser a base de todo o sistema de saúde em Portugal – não apenas do SNS. Cabe a todos nós, mais novos ou mais velhos, internos ou especialistas lutar pela dignificação da MGF. Da parte da APMGF deixo a garantia que vamos continuar a ser a voz de todos os médicos de família.

 

Maria João Garcia

 

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