Médicos de família precisam de mais formação para abordar as disfunções sexuais

Os médicos de família são, muitas vezes, quem os doentes procuram em primeiro lugar para falar sobre as disfunções sexuais. A Médica de Família e Membro da Coordenação do GESEX – APMGF fala dos desafios do acompanhamento e do tratamento

Os cuidados de saúde primários são, muitas vezes, o primeiro contacto do doente que sofre de algum tipo de disfunção sexual. A que situações é que o médico de família deve estar atento em consulta, tanto para as disfunções sexuais femininas, como para as masculinas?

Considero que a prioridade ou o ponto de partida deverá ser a aquisição e treino de competências comunicacionais para aprendermos e/ou otimizarmos a abordagem, oportunística ou não, desta temática.

Um segundo ponto prende-se com a mais-valia de podermos acompanhar o nosso utente ao longo do seu ciclo de vida e, como tal, temos muitas oportunidades para introduzir o tema, antecipar, clarificar, diagnosticar, orientar e acompanhar a presença de disfunções/ problemase/ou preocupações sexuais, nas diferentes fases de vida.

Por exemplo, no exame do recém-nascido, devemos estar atentos a malformações genitourinárias, na infância abordar a questão da identificação com o sexo biológico a partir dos 3 anos de idade, na puberdade abordar questão da identidade de género, das relações de proximidade e de intimidade, dos comportamentos sexuais de risco.

Importa ressalvar que, como médica de família e nestas faixas etárias, não nos podemos esquecer do aspeto triádico da relação médico-doente-pais/cuidadores/família, sendo determinante que seja salvaguardado o princípio da confidencialidade, dentro dos limites de segurança e, muitas vezes, a prestação de cuidados antecipatórios aos pais/cuidadores.

Na consulta de gravidez, devemos promover a saúde sexual junto da grávida e do casal dado surgirem alterações fisiológicas que podem constituir um desafio à vivência de uma sexualidade plena e, como tal, devemos encarar esta fase como uma oportunidade para explorar novas formas de vivenciar a sexualidade.

Transversalmente a todas as faixas etárias, nunca devemos assumir a orientação sexual, respeitando sempre a individualidade de cada um, e considerar a vivência da sexualidade de forma individual e não apenas em casal.

Além disso devemos estar atentos à presença de fatores de risco cardiovasculares, como hipertensão arterial, dislipidemia, excesso de peso/obesidade, perímetro abdominal aumentado, sedentarismo, tabagismo, diabetes mellitus, à presença de sinais de hipogonadismo, de hipotiroidismo, à presença perturbações mentais e à iatrogenia medicamentosa que, muitas vezes, são a causa da disfunção e condicionam não adesões à terapêutica importantes.

Por último, e não menos importante, esta temática deve ser abordada aquando da viuvez, na presença de doenças do foro oncológico, doenças crónicas e em cuidados paliativos. Portanto, é algo a que temos de estar atentos em todo o ciclo de vida dos nossos utentes.

Enquanto médicos de família, quais são os maiores desafios no seguimento destes doentes em consulta?

Considero que os fatores já enunciados na literatura, como a falta de tempo, os preconceitos dos próprios clínicos na abordagem do tema, a falta de formação neste âmbito, quer em termosde comunicação, quer em termos clínicos, e a falta de prática na orientação terapêutica serão os principais fatores.

Já nota alguma influência da pandemia e das circunstâncias de incerteza que rodeiam o momento atual no aparecimento de novos casos de disfunção sexual ou no agravamento desituações clínicas já diagnosticadas?

Da minha experiência clínica, este “novo normal” trouxe algumas alterações. Nalguns casos, e ao nível dos casais heterossexuais, a convivência diária mais intensa trouxe problemas relacionais com consequente diminuição da líbido no caso feminino e procura mais frequente da prática de relações sexuais, nomeadamente penetração vaginal, no caso do sexo masculino. Portanto houve uma dessincronia/discrepância de expectativas quanto ao desempenho/expectativa sexual.

Também verifiquei um agravamento das perturbações de ansiedade/depressiva com consequente diminuição do desejo e não podemos esquecer que o aumento do peso corporal e do perímetro abdominal determinado pelo confinamento futuramente poderá contribuir, por exemplo, para o desenvolvimento de disfunção erétil, um preditor de risco cardiovascular muito importante.

A procura de parceiros sexuais online foi, igualmente, uma tendência notada.

Como encara a formação e a atenção que é dada às questões da sexualidade na especialidade de Medicina Geral e Familiar? É suficiente ou há lacunas que necessitam de ser colmatadas?

Há, efetivamente, muitas lacunas. Quer ao nível da formação pré-graduada, quer ao nível da formação pós-graduada. Além disso, e considerando a comunicação clínica e a relação médico-doente uma pedra basilar para uma abordagem eficaz neste âmbito, a falta de treino na abordagem e colheita da história sexual determinam muitas vezes o insucesso no diagnóstico e respetiva orientação terapêutica.

Felizmente, desde há cerca de um ano e meio que todos os internos de Medicina Geral e Familiar têm acesso a uma pequena formação de carácter obrigatório sobre como abordar, em termos comunicacionais, a sexualidade em consulta, mas, ainda assim, fica muito aquém das necessidades.

AO/SO

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