13 Nov, 2023

Ilhas sem Hospital. “Continua a haver uma lacuna de profissionais com as competências para assegurar uma prestação de cuidados de qualidade”

No âmbito das I Jornadas das Ilhas sem Hospital, que decorreram nos dias 27 e 28 de outubro, o SaúdeOnline entrevistou Débora Andrade, Enfermeira Especialista na Área da Pessoa em Situação Crítica e presidente do evento, com o intuito de conhecer a realidade destas regiões.

Que balanço faz do evento?

As I Jornadas das Ilhas sem Hospital decorreram nos dias 27 e 28 de outubro de 2023 e o balanço do evento é extremamente positivo. Procurámos obter o feedback dos participantes e envolvidos na organização para identificar os aspetos positivos e quais as oportunidades de melhoria, metodologia que foi fundamental para encararmos o futuro com ânimo.

Inicialmente, esperávamos cerca de 20 a 30 inscrições, pois eram as primeiras jornadas, uma novidade para os profissionais de saúde e eram realizadas na ilha mais oriental do Arquipélago dos Açores, ou seja, com uma logística de viagem maior e onde, habitualmente, não decorre este tipo de eventos para profissionais de saúde.

O facto de este evento ter um programa científico vasto e rico, englobando temas direcionados para médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que formam as equipas multidisciplinares terá sido um dos fatores impulsionadores para o número de inscrições.

A adesão foi surpreendente e tivemos de encerrar as inscrições antes da data prevista, sendo que chegámos aos 115 inscritos provenientes de 8 ilhas do Arquipélago dos Açores, Madeira e Continente. Em relação à partilha de conhecimento na área da investigação, tivemos 16 posters publicados durante as jornadas que foram uma mais valia e vieram enriquecer este evento.

 

Quais as principais mensagens?

A realização deste evento surge pela carência de formação que as ilhas sem hospital sentem, por estarem fora do circuito tradicional dos eventos científicos e, por isso, há a necessidade de promover e disseminar o conhecimento técnico e científico a todos os profissionais da saúde destas ilhas, bem como o seu desenvolvimento e afirmação profissional.

O principal valor acrescentado deste projeto reside na disponibilização de uma formação especializada não existente, ou insuficientemente desenvolvida nas ilhas sem hospital, com o intuito de tornar a prestação de cuidados de maior qualidade e mais eficiente.

“O doente e a sua família são o nosso maior foco.”

 

Na sua intervenção, abordou o doente crítico. Regra geral, estes doentes estão em estado crítico porquê?

O doente crítico é uma pessoa que apresenta a sua vida ameaçada por falência (multi)orgânica ou risco de falência, ou seja, é uma pessoa que apresenta uma ou mais funções orgânicas em risco e a sua sobrevivência depende de meios avançados que não estão disponíveis nas ilhas sem hospitais, tais como meios avançados de monitorização, vigilância e terapêutica.

Ao longo dos tempos, verifica-se um aumento da complexidade dos doentes e um avanço tecnológico que, consequentemente, exigem profissionais de saúde mais especializados e capazes de prestar cuidados diferenciados. Podemos aferir que nas ilhas sem hospital continua a haver uma lacuna de profissionais de saúde com as competências necessárias para assegurar uma prestação de cuidados de qualidade aos doentes críticos devido à insuficiente formação especializada.

A primeira abordagem à pessoa em situação crítica é primordial para a prevenção de falência orgânica e/ou tratamento da mesma, sendo de extrema importância a preparação dos profissionais de saúde. Esta preparação é crucial porque poderá ditar a recuperação da pessoa, como também prevenir o aparecimento de sequelas que poderão ter impacto social, psicológico, económico, profissional e familiar.

 

Quais os principais desafios/problemas que enfrentam com estes doentes nas ilhas sem hospital?

São vários os desafios/problemas que enfrentamos com estes doentes, mas na minha opinião, a insularidade é o desafio que assume o papel de destaque, uma vez que o doente crítico necessita de ser transferido para o hospital de referência que se situa noutra ilha e estamos dependentes de meios aéreos, das condições climatéricas, das condições da aeronave e da sua tripulação para que se consiga efetivar o transporte.

Outro problema que identifico e que pela relevância sublinho é a insuficiente formação direcionada para os profissionais de saúde que exercem nestas ilhas. Muitas vezes, estas instituições são vistas como centros de saúde no seu conceito tradicional e o foco das mesmas é a prestação de cuidados de saúde primários. No entanto, as Unidades de Saúde das Ilhas sem Hospital estão dotadas de serviços de internamento e de unidades básicas de urgência que são a porta de entrada de toda a tipologia de doentes (síndromes gripais, (poli)traumatizados, enfartes, AVC…).

No meu ponto de vista, a multidisciplinaridade assume um papel fulcral na abordagem a esta tipologia de doentes e a formação é essencial para que seja feita uma abordagem decisiva, eficiente e eficaz, com uma liderança exímia. Para isso é necessário que haja um investimento na formação dos profissionais de saúde afetos a estas instituições. Na Unidade de Saúde da ilha de Santa Maria este é um caminho que começa a ser trilhado, evidenciado pelo aumento de 70% dos custos com formação em 2022, comparativamente a 2021.

No entanto, não existem só problemas ou desafios, existem vantagens como, por exemplo, equipas multidisciplinares com capacidade de resposta perante diferentes cenários, que conhecem de forma muito próxima a sua população e as suas necessidades.

Por mais que tente descrever desafios e problemas é algo difícil para mim porque todas as restantes ilhas sentem dificuldades que podem ser ou não semelhantes às que se sentem na ilha de Santa Maria e, por isso, a realização destas jornadas foi um momento único onde se sentiu a força e a resiliência dos profissionais de saúde que exercem funções nas ilhas pequenas e com menos recursos.

“Estes profissionais de saúde, melhor do que ninguém, conhecem a sua realidade, dificuldades e a grandeza do que é prestar cuidados de saúde neste paraíso que se localiza no meio do Atlântico.”

 

No evento abordaram as Vias Verde Coronária e Sépsis. Que mais-valias nota desde que existem?

Sem dúvida que a Via Verde Coronária e Via Verde Sépsis são uma mais-valia para as instituições, para os profissionais de saúde, mas acima de tudo, são uma mais valia para o doente porque permitem agilizar todo o processo desde a ocorrência do evento até ao reencaminhamento para o hospital de referência que, no caso da ilha de Santa Maria, será o Hospital do Divino Espírito Santo, na ilha de São Miguel.

A implementação de ambas as vias verdes permitem uma sistematização dos cuidados prestados, ou seja, um conjunto de procedimentos que serão fulcrais para a boa evolução do quadro clínico do doente. A sistematização de procedimentos que está presente nas vias verdes permite realizar uma rápida avaliação clínica e instituir o mais precocemente possível a terapêutica adequada. Por isso, não tenho dúvidas que uma das mais-valias seja o seu reflexo na melhoria da mortalidade e morbilidade.

 

Que outras iniciativas se podem esperar nos próximos tempos?

Encontro-me envolvida na área da formação da Unidade de Saúde da Ilha de Santa Maria, sendo a responsável do Centro de Estudos e Investigação e coordenadora do Núcleo de Formação até à presente data e, como tal, a nossa equipa já se encontra a preparar o plano de formação para o ano de 2024.

Efetuamos anualmente o levantamento das necessidades formativas que nos permitem aferir quais são as mais relevantes e elaboramos o plano de formação tendo em conta as necessidades apontadas. Já existem planos para futuras iniciativas como a realização de formação direcionada para os cuidados de saúde primários, por exemplo, na área da intervenção precoce, saúde infantil e na área da obesidade, numa parceria com a Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade.

Nos cuidados de saúde diferenciados a aposta será nas áreas de trauma, ventilação invasiva e não invasiva e doente crítico. Como nos encontramos muito direcionados para o trabalho em equipa multidisciplinar estamos a planear formações que vão ao encontro destes como um todo.

É nosso intuito manter as formações abertas a todos aqueles que se queiram inscrever, nomeadamente, outros profissionais de saúde das ilhas sem hospital que sentem as mesmas dificuldades que nós, porque melhor do que aprendermos sozinhos é aprendermos todos juntos.

Em 2025 voltaremos com as II Jornadas das Ilhas sem Hospital e estamos empenhados em honrar as expetativas dos conferencistas, depois do sucesso das I Jornadas.

 

MJG

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