“É indispensável desenvolver os centros que tratam os cidadãos com síndrome do intestino curto”
No âmbito do Mês de Sensibilização para a Síndrome do Intestino Curto, agosto, Jorge Fonseca, diretor do Serviço de Gastroenterologia do Hospital Garcia de Orta e responsável pelo Centro de Nutrição Artificial, explica em que consiste esta síndrome, que envolve a falência do intestino, quais as suas causas, sintomas e formas de prevenção. O especialista faz referência à importância de se desenvolverem centros especializados no tratamento destes doentes e ao facto de que, atualmente, no nosso país, esta síndrome nem sempre é adequadamente valorizada e encaminhada.
O que é a síndrome do intestino curto/falência intestinal crónica (SIC-FI)?
A síndrome do intestino curto é uma situação clínica rara. Algumas pessoas desenvolvem doenças intestinais tão graves que têm de ser operadas para retirar parte do intestino. Ocasionalmente, uma grande porção de intestino é afetada e tem de ser retirada cirurgicamente para salvar a vida ao doente. Por vezes, depois da operação o intestino que resta é tão pouco que não chega para absorver o mínimo de nutrientes e água indispensáveis à vida. Estas pessoas ficam com uma síndrome do intestino curto com falência intestinal crónica e necessitam de outra forma, não intestinal, para receber a água e os nutrientes necessários para sobreviver. A falência intestinal crónica também pode ocorrer por outras doenças, por exemplo doenças que comprometem gravemente a absorção intestinal de nutrientes, mas a síndrome do intestino curto é de longe a causa mais frequente de falência intestinal crónica.
Qual é a prevalência da SIC-FI e quais os grupos populacionais mais afetados?
A SIC-FI pode aparecer em qualquer idade, desde o nascimento até ao grande idoso com mais de 80 anos. Naturalmente, as causas subjacentes são muito variáveis com a idade e as doenças dos recém-nascidos são diferentes das dos idosos. A prevalência da SIC-FI que está descrita é muito variável entre 1 e 40 doentes por milhão de cidadãos.
Na realidade, esta prevalência é tão variada porque a sobrevivência dos doentes depende de terem tratamento adequado. Sem tratamento morrem rapidamente e os países que não proporcionam condições de tratamento aos seus cidadãos são os que apresentam prevalências mais baixas. Infelizmente, este é ainda o caso do nosso país.
Um estudo nacional de 2019 encontrou apenas 11 doentes adultos sob tratamento, uma prevalência de um adulto por milhão, espelhando a carência de apoio aos doentes e aos centros que os tratam.
Qual a taxa de mortalidade?
Sem tratamento, os doentes desenvolvem desnutrição progressiva que os leva à morte. Literalmente, morrem de fome. O tratamento é feito com a colocação de um cateter numa grande veia, através do qual se administram os nutrientes (Nutrição Parentérica), várias horas todos os dias ou em dias alternados. É um tratamento muito complexo, que dura anos, eventualmente toda a vida, estando sujeito a complicações que podem ser fatais. Mas com uma boa equipa terapêutica e adequada colaboração dos doentes é compatível com uma vida plena, com poucas restrições.
“Um estudo nacional de 2019 encontrou apenas 11 doentes adultos sob tratamento, uma prevalência de um adulto por milhão, espelhando a carência de apoio aos doentes e aos centros que os tratam”
Dada a sua complexidade, o tratamento afeta muito a qualidade de vida dos doentes?
O tratamento é indispensável à sobrevivência, mas é muito exigente. Vários dias por semana, em alguns casos todos os dias, é necessário administrar os nutrientes através do cateter venosos, durante 6, 8 10 horas, às vezes mais. Tenta-se que o tratamento se faça durante a noite, para libertar as horas diurnas, mas mesmo assim é muito rigoroso e pode interferir com a vida profissional ou com o estudo. Por outro lado, o tratamento gera complicações que exigem internamento ocasional. Contudo, de uma forma geral pode ser compatível com uma vida plena, com poucas restrições.
Há forma de prevenir SIC-FI?
A melhor forma de prevenção é o tratamento ótimo das doenças subjacentes que evite cirurgias muito extensas do intestino. Com a terapêutica atual, hoje a SIC-FI é rara na Doença de Crohn. Por outro lado, os cirurgiões são cada vez mais cuidadosos no sentido de deixar uma boa extensão de intestino quando uma excisão é indispensável. Mas, no princípio, é fundamental que a população tenha um estilo de vida que evite o cancro e as doenças que levam à obstrução das artérias intestinais, a diabetes, a hipertensão arterial e a aterosclerose.
Quais os sintomas?
O principal sintoma que afeta estas pessoas com SIC-FI é a desnutrição progressiva, com emagrecimento e falta de força, ou a desidratação por falta de líquidos. Frequentemente, depois de uma cirurgia aos intestinos apresentam diarreia que não é possível controlar eficazmente, porque os líquidos não são absorvidos. Para pessoas que ficam com um “saco” para recolher as dejeções, nota-se que necessitam de esvaziar o saco coletor múltiplas vezes por dia. Muito incómodo, mas não tão grave como a desnutrição.
“O principal sintoma que afeta estas pessoas com SIC-FI é a desnutrição progressiva, com emagrecimento e falta de força, ou a desidratação por falta de líquidos”
Quais as principais causas?
As causas da SIC-FI são muito variadas. Nos recém-nascidos e crianças pode ocorrer por alterações congénitas, enterocolite necrosante ou volvos intestinais. Nos adultos, a causa mais frequente era a cirurgia da Doença de Crohn, mas atualmente esta doença controla-se muito melhor. As cirurgias por cancro digestivo ou ginecológico são hoje a maior causa. Nos mais idosos, as doenças das artérias que provocam enfartes intestinais, muitas vezes associadas à diabetes, são muito importantes. Mas as causas são múltiplas em todos os grupos etários.
Como é feito o diagnóstico da SIC-FI? Quais são os sinais de alerta a que tanto doentes, como médicos devem estar atentos?
Em regra, a síndrome do intestino curto é identificada depois de uma cirurgia com excisão do intestino, quando se sabe que o intestino excisado foi muito ou o doente não recupera adequadamente, mantendo diarreia ou grande eliminação de líquidos pelo estoma, continuando a desnutrir e perder peso sem recuperar da cirurgia. As outras causas mais raras de falência intestinal crónica são difíceis de diagnosticar e exigem estudo personalizado da situação clínica.
A doença é atempadamente diagnosticada e os doentes encaminhados para um centro especializado no seu tratamento?
Infelizmente, entre nós o encaminhamento dos doentes ainda não é feito com a regularidade que gostaríamos de ver. No Sul do nosso país, o Hospital Garcia de Orta tem o centro com maior experiência. Recebemos e acompanhamos todos os doentes que têm condições para tratamento seguro e temos recebido doentes de toda a área metropolitana de Lisboa, de Setúbal a Sintra ou Vila Franca de Xira. Outros centros estão, também, a começar. Mas nem sempre a doença é adequadamente valorizada e encaminhada.
Como é feito o tratamento e seguimento destes doentes?
Como o intestino é incapaz de absorver a alimentação suficiente para manter a saúde e a vida, os nutrientes têm de ser colocados diretamente na circulação sanguínea, através de uma grande veia. Chama-se a isto Nutrição Parentérica (NP) e é a base da terapêutica. A NP é administrada durante a noite, diariamente ou em dias alternados, durante 8 a 14 horas. Este horário destina-se a permitir que os doentes aproveitem o dia para atividades normais, incluindo trabalhar e estudar. A esta NP junta-se a alimentação oral, que deve ser prescrita por uma nutricionista experiente com estes doentes, adaptada à morfologia do intestino restante e às preferências individuais.
Os líquidos ingeridos têm que ser adaptados, pois estas pessoas não devem beber água ou refrigerantes normais. Alguns medicamentos são usados para reduzir as secreções e os movimentos intestinais e, assim, reduzir a diarreia. Mais recentemente, apareceu um medicamento que atua como uma hormona de crescimento do intestino e que permite aumentar muito a absorção intestinal e reduzir ou suprimir as necessidades de NP. Em alguns casos, segmentos de intestino separados podem ser reunidos e aumentar o comprimento do intestino útil. Por fim, para alguns raros pacientes podem usar cirurgias muito específicas de alongamento do intestino.
Quais são os principais desafios no seu tratamento?
Tendo em conta que o suporte nutricional é a base do tratamento, os grandes desafios são o de otimizar a NP e oral, minimizar os importantes riscos da NP e, acima de tudo, construir uma progressiva autonomia terapêutica dos doentes e suas famílias.
Qual a importância deste mês de sensibilização?
Trata-se de um período de eleição para mostrar a todos os portugueses que o SIC-FI existe, pode atingir qualquer um de nós, os nossos pais ou os nossos filhos, qualquer um, e que é indispensável desenvolver os centros que tratam os cidadãos com esta doença.
Que mensagem deixa aos doentes e à população em geral?
A todos os portugueses quero dizer que a síndrome do intestino curto – falência intestinal crónica é um problema de saúde real, que pode atingir qualquer pessoa. Aos doentes, mas também a todos os profissionais de saúde, quero lembrar que as Consultas de Nutrição Artificial, como a do Hospital Garcia de Orta, estão prontas para receber os doentes com SIC-FI.
Sílvia Malheiro
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