“A FNAM quer assinar um acordo, mas tem de ser bom para os médicos e para o SNS”

Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), falou ao SaúdeOnline na véspera de mais uma ronda negocial com o Ministério da Saúde. Admitindo que não é fácil confiar em Manuel Pizarro, diz que não vai parar de lutar, nomeadamente pelas 35h semanais e pela reposição – “não é aumento” – do vencimento base de todos os médicos. Afinal, em causa está também, segundo diz, o direito de a população continuar a ter acesso a um Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Está à frente da FNAM há 11 meses. Alguma vez imaginou que ia ter uma jornada tão longa de negociações com o Ministério da Saúde?

Quando se assume o desafio de liderar a FNAM – que é constituída pelos sindicatos médicos do Norte, Centro e Sul – está-se preparado para este tipo de situações. Gostaríamos muito que, desde o início, tivesse havido uma negociação séria e competente por parte do Ministério da Saúde, para se chegar a um bom acordo, que atraia e fixe os médicos no SNS. Mas, isso não tem sido a realidade.

Infelizmente, sobretudo na última década, somos os médicos mais mal pagos da Europa, a profissão que mais perdeu poder de compra em Portugal, o que conduz a uma debandada de médicos do SNS. Note-se que não há falta de médicos em Portugal, logo o problema não está aí. Somos cerca de 60 mil. A questão é que, destes, no SNS são cerca de 31 mil (dois terços são especialistas e um terço são internos). Claramente não chegam [para dar resposta no SNS]! Existem 1,6 milhões de cidadãos sem médico de família, temos um novo caos instalado nas urgências, porque os médicos já não têm mais disponibilidade para fazer horas extraordinárias, além das 150h previstas na lei. As urgências dependem muito dessas horas e de médicos tarefeiros. Na Ginecologia-Obstetrícia temos grávidas a serem transferidas para o privado, enquanto as maternidades fecham, as consultas estão atrasadas, etc. A única forma de reverter este problema é ter mais médicos no SNS, mas, para tal, do ponto de vista laboral, precisamos de melhores condições de trabalho e de salários mais justos.

 

O processo negocial está a prolongar-se no tempo. Uma das razões também poderá ser o facto de não terem acesso antecipadamente às propostas do Governo, de modo a poder trabalhá-las?

Num processo negocial normal deve existir boa-fé de ambas as partes e os trâmites jurídicos e legais devem ser cumpridos. Este processo negocial iniciou-se a 20 de abril de 2022, perspetivando-se, na época, que terminaria em 30 de junho desse mesmo ano. Entretanto, prolongou-se até setembro. Depois parou. Voltou…Das dezenas de reuniões marcadas, tivemos mais de uma dezena canceladas na véspera, não tivemos acesso a ordem de trabalhos, atas, convocatórias ou documentos. Desde maio deste ano que não recebemos quaisquer atas! O que é que se pode concluir? Falta diligência e competência por parte do Ministério da Saúde e do Dr. Manuel Pizarro, em particular! Mas, também, há alguma má-fé, porque o protocolo negocial tinha quatro temas: valorização da grelha salarial, normas particulares da utilização e disciplina do trabalho, valorização do trabalho em serviço de urgência e o novo regime de dedicação. A 12 de setembro, o Ministério decide legislar unilateralmente sem incorporar as soluções da FNAM para melhorar, quer o decreto-lei das unidades de saúde familiar (USF) – embora não estivesse no protocolo inicial, debatemos o assunto –, quer o regime de dedicação plena. Apesar de ter sido aprovado em Conselho de Ministros no dia 14 de setembro, não conhecemos, até à data, os diplomas finais! Não há vontade política nem boa-fé por parte do Ministro da Saúde! A FNAM quer, sem dúvida, assinar um acordo, mas tem que ser bom para os médicos e para o SNS. Boas condições levam a que mais médicos fiquem no SNS e que as pessoas tenham acesso a um serviço público de qualidade e universal.

“Também é preciso uma reposição do salário – não é aumento, como se costuma dizer -, para podermos voltar a ter um poder de compra idêntico ao anterior ao período da Troika”

Vai haver mais uma reunião e vão apresentar uma contraproposta conjunta com o Sindicato Independente dos Médicos (SIM)…

Sim, mas nos pontos que convergimos. Para a FNAM é fundamental que o horário de 35h seja para todos os médicos e não apenas para os que fazem urgência. Com estes horários conseguimos que os mais velhos se mantenham no SNS e que os mais novos fiquem [no SNS]. É preciso conciliar a vida profissional com a vida pessoal e com 40 horas e todo o restante trabalho extraordinário é impossível. A FNAM aceita que esta mudança possa acontecer de forma faseada com um limite temporal de um ano.

Também é preciso uma reposição do salário – não é aumento, como se costuma dizer -, para podermos voltar a ter um poder de compra idêntico ao anterior ao período da Troika (perdemos cerca de 30%). Também aceitamos que seja um processo faseado com um limite de um ano.

Além disso, é fundamental que os médicos não passem 18h do seu horário de 40h semanais, dedicados à urgência. Temos que ter 12h de urgência para se poder fazer consultas, cirurgias, exames… Mais uma vez, pode ser uma medida faseada. Outro ponto crucial é que os médicos internos façam parte da carreira médica, porque são um terço da força de trabalho. Eles têm que ser protegidos. Por fim, há outra medida que defendemos e que é muito fácil de implementar: a reposição das férias para 25 dias. Antes da Troika, quem tirasse férias na época baixa tinha direito a mais 5 dias. Isto não tinha qualquer impacto orçamental e fazia com que os médicos não fossem todos de férias nas épocas altas, mitigando-se assim a escassez de recursos para completar escalas.

São soluções apresentadas pela FNAM, mas, infelizmente, o Dr. Manuel Pizarro teve a teimosia e a intransigência de não as incorporar. Veja-se o caso das USF: é uma ingerência à prática clínica que uma parte considerável do suplemento do vencimento fique a pender de números de MCDT e até de receituário.

Na dedicação plena há um aumento salarial, mas à custa de suplementos, mantendo-se as 40h semanais e com perda de direitos, que pode, inclusive, pôr os doentes em risco. Acaba o descanso compensatório após uma noite de trabalho, alguns aumentam o limite de horas extraordinárias para 250h – é inconstitucional e apelámos ao Presidente da República para que fizesse um pedido de fiscalização preventiva a esta medida -, aumenta a jornada diária para 9h e inclui o trabalho ao sábado para quem não faz urgência.

 

São medidas que põe em causa a atratividade do SNS?

Sem dúvida! Em nada vai contribuir para que os médicos se mantenham no SNS. E mesmo em relação a este aumento transversal de 500 euros, é à custa de suplementos e não é para todos os médicos. O Sr. Ministro parece querer criar mais desigualdades. A FNAM tem oito propostas em cima da mesa, sendo que apenas uma está relacionada com a grelha salarial! O que apresentamos são soluções para o SNS! Infelizmente, estamos neste impasse. Os médicos tinham uma grande expectativa na negociação, mas, em setembro, quando o Ministério legislou unilateralmente, só mostrou a sua atitude arrogante e prepotente. Os médicos deixaram de ter essa esperança e começaram a entregar as minutas para não fazerem mais horas extraordinárias. Isto leva a muitos constrangimentos, podendo, de facto, levar inclusive a uma fatalidade, mas o único responsável é unicamente o Dr. Pizarro que continua a não nos ouvir. Estamos a fazer de tudo e procuramos uma solução de boa-fé, mas não se pode ter apenas em conta as propostas de um lado, as do Governo.

Esta postura leva-nos a ter muitas dúvidas neste processo negocial que já vai em 18 meses. Precisamos de um Ministro que perceba de Saúde e em quem possamos confiar! Veja-se que esta desconfiança é normal até noutras questões. No caso dos Estatutos da Ordem dos Médicos, após o compromisso aceite, o Ministério retirou à OM competência de definir os serviços com idoneidade formativa, apesar de nada disso ter ficado acordado! Não é possível confiar. Precisamos de alguém que faça um trabalho sério e competente ao serviço, efetivamente, do SNS.

“A FNAM defende a dedicação exclusiva que é algo que já existiu no passado, quando existia um salário base e uma majoração pela exclusividade no SNS e também pelo alargamento de horário”

Quando fala em igualdade entre todos os médicos, tendo em conta que há especialidades que não fazem urgência, os primeiros não deveriam ganhar mais?

Nesse ponto, a diferença é, essencialmente, nos casos dos médicos de família e de Saúde Pública. Mas o que realmente defendemos é a equidade em termos de horários e de salário. As 35h devem ser para todos, independentemente de fazerem ou não urgências, assim como o salário base, porque a carreira médica é única. Efetivamente, os médicos de família têm uma organização diferente consoante o modelo organizacional das unidades, o que dá origem a suplementos. Podemos admitir que os médicos hospitalares que fazem urgência também possam ter alguma compensação pela penosidade, mas, o mais importante para todos os médicos, é que o salário base seja reposto de forma equitativa. Depois, obviamente, há especificidades decorrentes de cada especialidade.

 

Em relação à dedicação plena, por que são contra?

A FNAM defende a dedicação exclusiva que é algo que já existiu no passado, quando existia um salário base e uma majoração pela exclusividade no SNS e também pelo alargamento de horário. E havia uma série de direitos, ou seja, as pessoas eram valorizadas no salário, mas também na progressão na carreira. Contudo, não nos opomos à dedicação plena por sermos só do contra. A questão é que a dedicação plena implica mais trabalho, de acordo com a proposta do Governo.

 

Na última reunião, o Governo incluiu a Saúde Pública. É um ponto positivo?

Sim, lembraram-se finalmente da Saúde Pública. No entanto, a disponibilidade permanente deve ser para todos os médicos que estejam em condições de a receber, não se esquecendo a flexibilidade horária.

“Os médicos nunca estiveram tão unidos como agora na defesa da nossa profissão e do SNS. Ao longo dos últimos anos temos assistido a uma degradação das condições de trabalho. Os médicos também são pessoas”

Surgiu recentemente o Médicos em Luta. Este tipo de movimento pode indiciar que as estruturas sindicais podem estar a perder alguma força?

Não me parece. Os médicos nunca estiveram tão unidos como agora na defesa da nossa profissão e do SNS. Ao longo dos últimos anos temos assistido a uma degradação das condições de trabalho. Os médicos também são pessoas. No fundo, estamos a lutar pelo mesmo e este movimento é o espelho do descontentamento em relação ao Ministério da Saúde. O facto de o ministro ser médico criou alguma esperança, mas, infelizmente, estamos neste impasse.

 

O problema pode estar mais no Ministério das Finanças?

As Finanças também estão representadas na mesa negocial. O que existe é uma falta de vontade em resolver o problema.

 

É médica oncologista. Qual é a reação dos doentes, ainda por cima numa área tão sensível como a Oncologia, à greve dos médicos?

Os doentes estão do nosso lado e esta é a minha perceção e a dos outros colegas da FNAM – que inclui médicos de diferentes especialidades. As pessoas entendem a nossa luta, porque também percebem que as greves não têm o intuito de as prejudicar. Parafraseando o Dr. António Arnaut, é preciso haver boas condições para os médicos trabalharem, para que se sintam motivados e para que haja um SNS.

“O PS foi o partido que criou o SNS, mas parece que também o vai enterrar” 

Apesar de tudo, acredita que o SNS não vai morrer?

A continuar assim, tenho muitas dúvidas quanto à sua viabilidade. O PS foi o partido que criou o SNS, mas parece que também o vai enterrar. As minhas expectativas são muito baixas, mas, obviamente, vamos continuar a defendê-lo. O nosso objetivo ao pensar nos direitos dos médicos é também o de permitir que a população tenha um SNS acessível, universal e de qualidade.

 

Pelas suas palavras, percebe-se que não vão parar. Como é que a médica oncologista consegue manter a força para conjugar a vida profissional, sindical e pessoal?

Tento conciliar. Felizmente, na FNAM temos muita democracia interna  e dividimos trabalho. Não se pode parar, tudo fazemos para chegar a uma boa solução. Para tal, o Ministério da Saúde tem que nos ouvir.

Maria João Garcia

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