26 Abr, 2021

“A educação terapêutica da diabetes reveste-se de especial importância em todas as fases da doença”

Em entrevista, a especialista do Serviço de Endocrinologia do Centro Hospitalar Universitário de São João e professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Eva Lau, destaca como os aGLP-1 “revolucionaram” o tratamento farmacológico da DT2 e como as novas insulinas permitem uma melhor adaptação do esquema terapêutico ao estilo de vida da pessoa com diabetes tipo 1.

Quais são atualmente os principais desafios no que diz respeito à gestão e tratamento da diabetes tipo 1 (DT1) e tipo 2 (DT2)? 

A DT1 e a DT2 são doenças de etiologia complexa e de natureza crónica e, como tal, requerem um acompanhamento ativo e um diálogo constante entre os profissionais de saúde e o doente.  A educação terapêutica é fundamental em todas as fases do seu tratamento e constitui um dos principais desafios na gestão da doença. A compreensão dos objetivos metabólicos preconizados e dos potenciais riscos e complicações da doença, bem como do perfil farmacocinético de antidiabéticos e dos vários tipos de insulina são fundamentais no processo de escolha e na adesão terapêutica.

Assim, na decisão clínica do plano terapêutico, que inclui a eleição do fármaco ou fármacos para o tratamento da hiperglicemia, deve ter-se em consideração as características individuais de cada pessoa com o diagnóstico de diabetes. Atendendo ao perfil muito diversificado de cada um e, dada a evidência crescente do benefício de individualização, torna-se cada vez mais difícil estabelecer recomendações rígidas e universais. A resposta às expetativas e necessidades de cada pessoa e inclusão do doente no processo de decisão constitui, para mim, um dos principais desafios na gestão destas doenças.

 

Existe, no seu entender, alguma inércia terapêutica por parte dos médicos, no que concerne, nomeadamente, à utilização dos novos antidiabéticos, como os agonistas da aGLP-1, e à introdução de insulina e de terapêuticas injetáveis? 

Os agonistas da GLP-1 são classes farmacológicas que, no meu entender, revolucionaram o tratamento farmacológico da DT2. De uma abordagem glucocêntrica, compreende-se atualmente que o benefício inerente à utilização destas classes terapêuticas se estende muito além do controlo glicémico.

Como em todas as mudanças de paradigma existe um tempo de assimilação do conhecimento. No entanto, a evidência crescente que os agonistas da GLP-1 têm demonstrado, no que diz respeito à segurança cardiovascular tornam-nos cada vez mais fármacos de eleição na gestão da diabetes tipo 2, o que, de certa forma e, na minha perspetiva, contribui para quebrar a inércia terapêutica.

Relativamente à insulinoterapia, existem recentes avanços, nomeadamente o surgimento de novas insulinas com diferentes perfis farmacocinéticos, que mimetizam de forma mais próxima a secreção fisiológica de insulina e, consequentemente, traduzem-se num menor risco de hipoglicemias.  Estas novas insulinas, ao permitirem maior segurança na sua utilização, podem contribuir para ultrapassar algumas barreiras e inércia clínica que ainda existem no início da insulinoterapia.

 

Que receios/mitos ainda persistem (também da parte do doente) e que importa desmistificar no que diz respeito às terapêuticas injetáveis na diabetes?

Na DT2, as terapêuticas injetáveis e, mais especificamente, o tratamento com insulina é considerado, muitas vezes, como “um fim de linha” na gestão do controlo glicémico. O medo da administração, o medo das hipoglicemias e a associação errónea de que quem faz insulina tem ou terá complicações graves associadas à diabetes são algumas das ideias preconcebidas e que são importantes desmistificar desde o momento do diagnóstico. Nesse sentido, a educação terapêutica da diabetes reveste-se de especial importância em todas as fases da doença com o intuito de garantir a compreensão da necessidade de ajustes terapêuticos ao longo da história natural da doença e garantir a adesão terapêutica por parte do doente.

A introdução de aGLP1, também terapêuticas injetáveis, sem risco acrescido de hipoglicemias e, em alguns casos, com dispositivos mais apelativos, que permitem uma administração simples e semanal (como o caso do dulaglutido), veio facilitar e ajudar a desmistificar o universo das terapêuticas injetáveis.

Quais os benefícios que as novas insulinas (como o Lyumjev) apresentam em termos de parâmetros importantes na DT1 como a hipoglicemia, os níveis de glicemia pós-prandial (GPP) e o time in range (TiR)?

As novas insulinas como a insulina ultrarrápida lispro (Lyumjev) têm um perfil farmacológico mais aproximado à secreção fisiológica de insulina de uma pessoa sem diabetes, o que permite uma melhor adaptação do esquema terapêutico ao estilo de vida da pessoa com DT1.

A insulina ultrarrápida lispro apresenta uma velocidade de absorção mais elevada, o que permite reduzir a excursão GPP. Assim, a sua administração pode ser efetuada imediatamente antes da refeição, o que confere maior comodidade ao doente e constitui uma vantagem comparativamente a outras insulinas prandiais que carecem de tempo de espera para o início da sua ação. O seu perfil farmacocinético permite, por um lado, aumentar cerca de 6 vezes o tempo de exposição à insulina nos primeiros 15 minutos e, por outro lado, reduzir a exposição tardia aos efeitos da insulina (ou seja, 3 horas após a refeição). É ainda de valorizar o facto da utilização desta insulina se ter associado a mais 44 minutos dentro do alvo glicémico (TiR), sem aumento associado de hipoglicemias.

No caso dos aGLP-1 (como o dulaglutido) há evidência recente a mostrar que os benefícios se estendem à proteção cardiovascular. à luz dessa evidência, que doentes mais beneficiam desta terapêutica?

No caso do dulaglutido, o estudo REWIND incluiu doentes com doença cardiovascular estabelecida, doença aterosclerótica subclínica e doentes apenas com fatores de risco. É importante denotar que esta população era maioritariamente (cerca de 70%) constituída por pessoas que não tinham doença cardiovascular, o que difere de outros estudos com aGLP-1. A sua utilização traduziu-se numa redução significativa de 12% do endpoint composto por enfarte agudo do miocárdio ou acidente vascular cerebral não fatais e morte cardiovascular ou de outras causas.

Assim sendo, o dulaglutido tem impacto prognóstico na numa ampla variedade de pessoas com DT2, que vão beneficiar da sua utilização.

Os estudos de segurança cardiovascular com a-GLP1 vieram, deste modo, revolucionar o modo como encaramos e tratamos a DT2. Em doentes com fatores de risco ou doença cardiovascular aterosclerótica estabelecida deve considerar-se a sua utilização, independentemente do valor de hemoglobina glicada, ou seja, do controlo glicémico.

Sabemos que na diabetes a educação/ensino do doente é fundamental. Qual tem sido o impacto da atual pandemia ao nível da gestão das terapêuticas injetáveis, bem como de todos os outros parâmetros da abordagem e gestão da pessoa com diabetes na prática clínica?

A pandemia, numa fase inicial, dificultou o acesso aos cuidados de saúde e, nesse sentido, poderá ter sido um obstáculo à intensificação do esquema terapêutico, nomeadamente início de terapêuticas injetáveis. No entanto, a possibilidade de realização de consultas telefónicas funcionou como uma ferramenta de contacto e de aproximação entre o médico e a pessoa com diabetes. A disponibilidade de aGLP1, que embora correspondam a terapêuticas injetáveis, oferecem segurança, sem risco acrescido de hipoglicemias e o caso específico do dulaglutido, que consta de um dispositivo extremamente intuitivo, que permite uma administração fácil e semanal, constitui uma mais-valia nesta gestão da diabetes em tempos de pandemia.

A existência de novas insulinas com um perfil mais fisiológico, seja no caso das novas insulinas rápidas que têm um início de ação mais rápido, seja no caso das insulinas basais com uma maior duração de ação e menor variabilidade e, que se pode traduzir em menor risco de hipoglicemia, confere também uma maior segurança nos ajustes terapêuticos, ainda que, em alguns casos, tenham que ser feitos remotamente.

No mês em que se assinala o Dia Mundial da Saúde – que neste ano teve como “call for action” o mote “Construir um mundo mais justo e saudável”, avaliando-se o impacto da covid-19 no acesso à saúde, que a OMS preconiza como universal – considera que o atual contexto pandémico pode representar, ao invés de uma ameaça, uma janela de oportunidade para uma mudança efetiva no sentido de uma melhoria no plano da autogestão da doença, neste caso, da diabetes?

A covid-19, sobretudo, numa fase inicial dificultou o acesso presencial aos cuidados de saúde. Para colmatar essas dificuldades, sem dúvida que as teleconsultas permitiram reduzir alguns constrangimentos associados. Essa aprendizagem permitiu acompanhar e orientar os doentes, mesmo que à distância.

A educação de pessoas com diabetes passa por uma abordagem multidisciplinar que vai ajudar o doente a ultrapassar as dificuldades encontradas ao longo das várias etapas do tratamento. Tal, permite que a terapêutica seja individualizada e o mais adequada possível a cada doente. A pandemia por covid-19 veio dificultar este modo de avaliação. No entanto, a utilização de telemedicina e de meios tecnológicos que permitem a partilha de informação e dados entre a pessoa com diabetes e o médico, possibilita uma aproximação e o acompanhamento dos doentes, mesmo em regime não presencial. No entanto, julgo, ainda, ser necessário maior capacitação dos doentes na utilização destes meios tecnológicos e maior disponibilidade de recursos (equipamentos com vídeo, softwares) disponibilizados aos profissionais de saúde. Assim, na minha opinião, a telemedicina não substituirá as consultas presenciais, que continuarão a ser as pedras basilares para a educação terapêutica.

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