Política de preços afasta empresa e impede acesso à inovação

As empresas de dispositivos médicos acusam que o critério do “preço mais baixo” nos contratos públicos limita o acesso à inovação, prejudicando os doentes. Dívidas vencidas já são quase dois terços da dívida total

A Associação Portuguesa das Empresas de Dispositivos Médicos (APORMED) defende que o critério do “preço mais baixo” que hoje vigora nos concursos públicos de aquisição de dispositivos médicos pelas instituições do Serviço Nacional de Saúde (SNS) deve ser substituído por critérios que valorizem as propostas economicamente mais vantajosas, de modo a permitir a entrada de inovação no sistema e não a afugentar.

O sistema atualmente em vigor foi instituído no pico da crise económica e financeira em Portugal, quando o país foi alvo de resgate, e levou a que as instituições de saúde passassem a adquirir apenas em função do preço, não valorando, como acontecia no passado, a qualidade e as características específicas de cada produto.

Em declarações ao Jornal Económico, a presidente da APORMED, Maria Antonieta Lucas, diz que este sistema tem constituído “uma barreira à utilização de tecnologia de primeira linha, mais inovadora, com evidente prejuízo para os utentes”.

Em muitos concursos chega-se mesmo a impor preços máximos, que são sempre, ou iguais, ou – o que é mais frequente – inferiores aos dos concursos anteriores, que as empresas de dispositivos médicos têm de acompanhar, sob pena de serem excluídas do processo. Assim, mesmo que surjam novas tecnologias, os fornecedores são obrigados a acompanhar os preços definidos. “Com estas regras, a não ser que o doente tenha poder de compra que lhe permita ser intervencionado no setor privado, não consegue aceder à inovação”, afirma Maria Antonieta Lucas.

“No período em que o país esteve sob assistência externa, houve uma redução administrativa dos preços, a uma média de 10% por ano face aos valores praticados no exercício anterior, funcionando o novo preço como fator de inclusão ou exclusão nos procedimentos concursais”, diz.

Questionada sobre o peso da opinião dos médicos na decisão de compra dos dispositivos que irão utilizar nas intervenções clínicas, Antonieta Lucas diz que “os médicos que intervêm nas comissões responsáveis pela elaboração dos cadernos de encargos dos concursos pouco podem fazer”.

“É verdade que têm uma palavra a dizer relativamente aos dispositivos médicos que elegem para aquisição. O problema é que, se a escolha recair em tecnologias que resultem em despesa superior à estabelecida, esses dispositivos não são adquiridos”, explica.

Crise levou à deslocalização

Fundada em 1990, a APORMED conta atualmente com 58 associados, que empregam cerca de 2.700 trabalhadores, com um volume de negócios superior a 500 milhões de euros. Representa 44% do mercado global de dispositivos médicos e 74% do mercado público (SNS).

De acordo com dados do Health Cluster Portugal, em 2016 o setor exportou 268 milhões de euros.

Antonieta Lucas diz que o setor foi particularmente afetado pela crise económica, tendo-se reduzido o número de empresas e de postos de trabalho. “Foram despedidos largas centenas de trabalhadores e deslocalizados de Portugal para Espanha e outros países muitos centros de decisão, mantendo-se em Portugal apenas pequenas redes comerciais”, diz, acrescentando que “a gestão de topo [diretores gerais e country managers] e o middle management de muitas empresas de referência do setor encontram-se atualmente Iberizadas ou clusterizadas, o que faz com que muitas das que ainda operam em Portugal não tenham escritórios próprios ou armazéns locais, dispondo apenas de uma rede comercial”.

Além das dificuldades associadas ao critério do preço mais baixo, as empresas de dispositivos médicos enfrentam um outro problema: as consignações – o fornecimento de dispositivos médicos necessários para suprir necessidades pontuais dos serviços de saúde, como próteses ortopédicas com caraterísticas específicas ou stents coronários com um determinado calibre, entre muitos outros.

Face aos pedidos que lhes são dirigidos pelos serviços de saúde, as empresas disponibilizam, à consignação, os dispositivos médicos necessários, sendo emitida à posteriori a respetiva nota de encomenda indispensável à faturação. O problema é que, de acordo com dados divulgados recentemente, a prática “cresceu” 40%, entre dezembro de 2016 e março deste ano, particularmente nos hospitais com dívidas vencidas (superiores a 90 dias) mais elevadas, que desta forma conseguem dilatar os prazos médios de pagamentos reais, que em algumas situações chegam a atingir os dois anos.

“O que se verifica hoje é que muitos hospitais, não tendo capacidade financeira para adquirir os produtos, recorrem à consignação, protelando no tempo a emissão das notas de encomenda e, assim, o pagamento dos dispositivos”, acusa Antonieta Lucas.

Dívida vencida corresponde a quase dois terços da dívida total

Em abril de 2017, a dívida total dos hospitais às empesas associadas da APORMED era de 279,7 milhões de euros, o que representa uma subida de 16,6% face aos quatro primeiros de 2016. Daquele valor, quase dois terços – 176,8 milhões de euros – representam dívida vencida. O aumento, em valor, da dívida vencida foi de 27,5 milhões de euros.

O prazo médio de pagamento era, em abril, de 339 dias, de acordo com dados fornecidos à APORMED pelos seus associados.

A dívida relacionada com as consignações atingia, em abril, cerca de 20 milhões de euros, também segundo a APORMED.

A presidente da APORMED afirma que as dificuldades financeiras que atingem o setor acarretam riscos para os doentes, porque as equipas técnicas especializadas na manutenção dos equipamentos diminuíram drasticamente, colocando em causa os resultados esperados da utilização de muitos dispositivos médicos, particularmente dos dispositivos ativos, que necessitam de assistência técnica periódica, não apenas para reparações, mas também para recalibração, de modo a garantir a fiabilidade dos dados que disponibilizam.

Acresce que “a falta de um mapeamento dos equipamentos hospitalares faz com que se desconheça o estado em que estes se encontram”, diz.

“Sabemos, por informações que nos chegam dos associados, que muitos estão de tal modo obsoletos que já não há peças para substituir as que se vão deteriorando, nem equipas especializadas para os reparar”, afirma aquela responsável, acrescentando que se trata de um problema agravado pela “erosão dos preços que também atingiu os contratos de assistência técnica, com reduções administrativas de preços semelhantes aos que sofreram os contratos de fornecimento de dispositivos médicos”.

Novas regras europeias são um desafio

Com a publicação do novo quadro regulamentar europeu do setor, “publicado em maio último, e que entrará em vigor até maio de 2020, o atual panorama conhecerá uma alteração profunda”, acredita Antonieta Lucas. “As novas regras preconizam, por exemplo, a fixação, pelo fornecedor, de um prazo de validade do dispositivo”, a partir do qual o mesmo não poderá continuar a ser utilizado, algo que atualmente não era obrigatório”.

A pensar no novo cenário que irá enquadrar o setor, a APORMED definiu uma estratégia que passa pelo reforço da capacidade de intervenção da associação, que passou a integrar a MedTech Europe, uma entidade única europeia que surge da fusão da associação europeia que representava o setor do diagnóstico in vitro, a EDMA, e a associação que representava os dispositivos médicos, a EUCOMED, da qual a APORMED é associada há longa data.

“Um alinhamento que nos permite criar sinergias e escala para melhor enfrentar os muitos e complexos desafios comuns ao setor, como a implementação do Novo Código de Ética e do novo Regulamento Europeu do Dispositivo Médico, entre outros”, explica Antonieta Lucas.

A nível nacional, a associação integra a plataforma de compromisso para a sustentabilidade e Desenvolvimento do SNS, participando ainda em diversas comissões setoriais, com a apresentação de propostas e discussão de medidas com impacto na atividade. No âmbito destas participações, a associação propôs, entre outras medidas, a redução da taxa de IVA dos dispositivos comparticipados pelo Estado, de 23% para 6%.

MMM

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