“Temos cuidados exagerados com o sol”. 66% dos portugueses tem falta de vitamina D

Em entrevista, o médico reumatologista e professor da UC aponta a falta de exposição ao sol dos portugueses como a causa da carência generalizada de vitamina D e defende que a suplementação é essencial para os grupos de risco.

Como se explica que exista uma carência generalizada de vitamina D em Portugal?

Os portugueses não estão sozinhos nessa carência – é um fenómeno que ocorre em praticamente todo o mundo, com exceção dos países que há muitos anos a tentam combater.

A razão prende-se com a evolução da nossa cultura e hábitos de trabalho, que nos vão afastando da exposição solar. A ação do sol sobre pele não protegida, é a única fonte significativa de vitamina D.

Sucede agora que, por muito sol que faça, não o apanhamos. Deixámos de trabalhar ao ar livre, temos recomendações regulares para nos protegermos contra o sol, para usarmos protetor solar quando saímos, não existe nenhum creme de beleza que não contenha protetor sol.

Temos cuidados exagerados com o sol?

Em alguma medida, podem ser considerados exagerados. A quantidade de sol necessária para causar dano sério (nomeadamente, cancro da pele) é muito mais elevado do que aquela que é necessária para produzir vitamina D em quantidade suficiente.

Não há outra fonte. Sem o sol, teremos de pensar em suplementos, visto que a alimentação, por si só não é uma fonte suficiente. Para lhe dar uma ideia, seria preciso consumir 20 a 30 ovos ou 300 a 400 gramas de salmão por dia, o que é impraticável.

“Neste estudo, só considerámos deficitárias as pessoas que têm valores abaixo de 20 ng/ml. Se tivéssemos sido mais exigentes, na linha da sociedade de endocrinologia, só 3% dos portugueses teriam valores normais”

66% dos adultos apresentam insuficiência de Vitamina D e, no inverno, apenas 20% das pessoas têm valores aceitáveis. Esperava números tão expressivos?

Esperava. Na Europa, os números são muito semelhantes. Por outro lado, vários estudos realizados em Portugal já demonstravam uma carência muito marcada de vitamina D. Alguns foram feitos em idosos, outros com adolescentes (na região do Porto), outro no Hospital de Braga (onde se analisaram os pedidos de doseamento de vitamina D no hospital). Todos sugeriam que a carência de vitamina D é muito prevalente em Portugal.

Como se explicam estes resultados tendo em conta que vivemos num país com muitas horas de sol?

Não apanhamos sol. Em países que têm menos sol do que nós, quando faz um pouco de sol na primavera, as pessoas saem para a rua e para os parques. Nós fazemos o oposto e resguardamo-nos. Vamos para a praia no verão é certo, mas mesmo aí temos muito cuidado com a pele – os dermatologistas dirão que ainda bem. Contudo, bastaria que, na praia, não puséssemos protetor solar nos primeiros 10 minutos.

Curiosamente, os países com maior carência de vitamina D são os que têm mais sol e mais intenso. São os países do Norte de África, do Médio Oriente e do Sul da Europa.

Este é o primeiro a estudo a nível nacional a abranger todas as faixas etárias. Que metodologia foi seguida?

Os estudos que tínhamos até agora eram limitados a um grupo de pessoas. Um dos primeiros foi feito no Hospital de Vila Franca de Xira, um outro na população idosa, de boa dimensão. Temos estudos feitos nos Hospitais da Universidade de Coimbra e de Braga, outro em adolescentes da região do Porto. Contudo, todos nos davam uma visão parcelar de grupos de risco (internados e idosos) ou então analisavam apenas as crianças e jovens, uma população em que não se espera encontrar um défice de vitamina D (mas, mesmo aqui, a percentagem de indivíduos com valores normais era muito pequena).

Neste caso, as pessoas foram selecionadas para um estudo de epidemiologia de doenças reumáticas. Foram selecionadas por randomização, por via de números telefónicos. Temos um paralelo entre o número de pessoas que observámos, a região a que pertencem, idade, sexo,  e o senso populacional Português, que mostra que a nossa amostragem é bastante representativa. As colheitas de sangue foram feitas entre 2011 e 2013. Há 3 anos, retirámos essas estas amostras do biobanco e fizemos as análises.

No que diz respeito aos resultados, foram observadas diferenças entre homens e mulheres?

As mulheres têm mais carência do que os homens. Isto acontece em todo o mundo: um estudo irlandês muito recente chega a conclusões sobreponíveis. A questão do trabalho no exterior é seguramente um dos fatores que contribui para isto. O cuidado com a pele é outra explicação. Por outro lado, o corpo das mulheres tem uma percentagem maior de gordura maior. É sabido que a gordura sequestra a vitamina D, reduzindo a sua concentração no sangue. Isto explica também que as pessoas obesas tenham níveis mais baixos de vitamina D, comparando com as de menor peso.

Em relação às faixas etárias, qual é o grupo mais afetado?

Os idosos são, de longe, o grupo com mais carência. Ter mais de 70 anos aumenta em quase 6 vezes o risco de falta de vitamina D. Entre os 18 e os 29 anos, 44% dos doentes tinham valores normais, contra 17% nas pessoas com mais de 75 anos. Esta diferença era esperada. A pele idosa é menos competente a produzir vitamina D.

Há também diferenças significativas entre as várias regiões do país.

É verdade. Os Açores destacam-se como sendo a zona do país que tem níveis mais baixos de vitamina D, não muito longe do Norte e Centro e da região de Lisboa e Vale do Tejo. A zona do país com menos carência é a zona do Algarve, seguida do Alentejo.

O que se considera um nível aceitável de vitamina D?

Não há uma unanimidade completa. Há duas grandes referências mundiais, ambas dos Estados Unidos. Uma do Instituto de Medicina americano e outra da Sociedade Americana de Endocrinologia. Ambas dizem que abaixo de 20 ng/ml se pode considerar deficiência de vitamina D. A Sociedade de Endocrinologia também não fica satisfeita com valores entre 20 e 30 ng/ml.

Neste estudo, só considerámos deficitárias as pessoas que têm valores abaixo de 20 ng/ml. Se tivéssemos sido mais exigentes, na linha da sociedade de endocrinologia, só 3% dos portugueses teriam valores normais.

Em relação à suplementação, é da opinião de que só os grupos mais vulneráveis devem ser suplementados?

Não tenho nenhuma dúvida de que o saldo custo/benefício é positivo, especialmente nos mais velhos. Todas as pessoas com mais de 65 anos deviam ser suplementadas com vitamina D. Os jovens também são um grupo a suplementar. Se pensarmos em suplementar toda a gente pode argumentar-se que estaríamos a tratar um terço da população sem necessidade. É verdade. Contudo, estas pessoas não correriam nenhum risco relevante. A vitamina D é muito segura: é difícil intoxicar alguém. Por outro lado, numa campanha pública, a  vitamina D poderia ser adquirida ao ‘preço da chuva’, mais barato do que a água.

Muitos países recomendam, há muitos anos, a suplementação generalizada da população com vitamina D, especialmente os idosos. Alguns países fortificam os laticínios com vitamina D. Em Inglaterra, há uma recomendação da Autoridade de Saúde Pública para que todos sejam suplementados no inverno e na primavera. Acho que estes nossos resultados merecem um debate sério em Portugal sobre o que fazer em face deles.

Quais são as áreas em que a vitamina D pode ter efeitos benéficos no ser humano?

Uma delas é na osteoporose. Não há tratamento eficaz para esta doença sem vitamina D. A osteoporose é um problema de saúde pública, particularmente em países envelhecidos como o nosso. Ocorrem em Portugal mais de 12 mil fraturas osteoporóticas da anca em cada ano. Dessas, 28% morrem no ano seguinte, sendo que 12% só morreram por causa da fratura, segundo dados do nosso serviço no CHUC.

Há outra doença mais difícil de diagnosticar, a osteomalácia, que é a consequência direta da carência de vitamina D. Traduz-se em dores nos ossos, músculos, mas também em fraturas, falta de força, dificuldade em levantar ou andar. O equivalente nas crianças é o raquitismo, doença grave que foi banida apenas devido à suplementação generalizada de crianças com Vitamina D.

Depois há um conjunto enorme de doenças que têm sido relacionadas com a carência de vitamina D. Ou seja, em que se tem verificado que as pessoas que têm essas doenças apresentam níveis mais baixos de vitamina D, ou em que essa carência se associa  a um percurso mais grave dessas doenças. Isto vai da diabetes à insuficiência cardíaca, das infeções à doença ao Alzheimer ou a uma variedade de cancros. Há mesmo estudos que mostram que suplementar com vitamina D diminui o risco de infeções, nomeadamente virais, incluindo as de alguns coronavírus (que não o SARS-Cov-2, que não foi ainda estudado). Admito que não temos evidência absolutamente sólida do benefício da suplementação de Vitamina D em todas estas áreas, mas há indícios, biologicamente plausíveis, de que assim seja.

Considera que os próprios médicos continuam a desvalorizar o problema da carência de vitamina?

Tem havido um esforço nesse sentido. Houve um aumento de visibilidade deste tema, sensibilizando os médicos. De há dois ou três anos para cá têm surgido uma série de críticas e  insinuações de que a atenção dada à Vitamina D é um exagerada. As próprias autoridades governamentais queixaram-se de que os gastos com vitamina D tinham aumentado muito. Isto sem se preocuparem em saber se este aumento era uma coisa boa ou má, se estamos a gastar demais ou a recuperar o tempo perdido…, Os gastos com anti-hipertensores e com todo o tipo de medicamentos aumentaram nos últimos 50 anos – e ainda bem. Isto veio confundir os médicos, o que se refletiu numa diminuição da prescrição de suplementos.

TC/SO

 

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