7 Nov, 2022

Reportagem em Alcobaça. ‘O som como último colo’ a doentes em cuidados paliativos

O projeto ‘Aqui contigo - O som como último colo’ procura estar com as pessoas em cuidados paliativos, no Hospital de Alcobaça ou em suas casas. "Expressar emoções é uma forma de aliviar o sofrimento", diz a médica coordenadora da Unidade de Internamento dos Cuidados Paliativos

A música leva vida e serenidade aos utentes da Unidade de Internamento dos Cuidados Paliativos do Centro Hospitalar de Leiria, em Alcobaça, através do projeto ‘Aqui contigo – O som como último colo’, da Sociedade Artística e Musical dos Pousos (SAMP).

O som começa, aos poucos, a ecoar nos corredores da Unidade de Internamento dos Cuidados Paliativos no Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes de Oliveira, inaugurada há cerca de um ano e meio. E não é um som de festa que se escuta. São tons suaves, serenos, que transmitem uma tranquilidade incomum e que acabam por mexer com muitas emoções. De todos, mas também – e sobretudo – de quem está deitado numa cama, por vezes, sem se mexer. Nem falar.

O projeto ‘Aqui contigo – O som como último colo’ tem tido um “impacto muito positivo” nos doentes e até nos profissionais de saúde da Unidade de Internamento dos Cuidados Paliativos do Centro Hospitalar de Leiria.

Três músicos da Sociedade Artística e Musical dos Pousos (SAMP), de Leiria, passam todas as semanas pelo internamento dos cuidados paliativos do Centro Hospitalar de Leiria, a funcionar no Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes de Oliveira, dando asas ao projeto ‘Aqui contigo – O som como último colo’, financiado pelo Portugal Inovação e com o apoio da Câmara Municipal de Leiria, União de Freguesias de Leiria, Pousos, Barreira e Cortes, e Junta de Freguesia do Arrabal.

“Acreditamos que este projeto da SAMP tem um impacto muito positivo nos nossos doentes e, atrever-me-ia a dizer, até nos profissionais de saúde. Há um momento em que temos música, na nossa unidade, que nos permite, por vezes, relaxar e às vezes também deixar fluir algumas emoções que são mais difíceis, sobretudo, para os doentes, de transparecer”, adiantou à agência Lusa a coordenadora da Unidade de Internamento dos Cuidados Paliativos, Ana João Carvalho.

 

“Expressar emoções é uma forma de aliviar o sofrimento”

 

A médica defendeu que a comunicação em cuidados paliativos deve ser “clara, eficaz e expressar emoções, sempre que isso faça sentido e ajude também a aliviar o sofrimento, porque, às vezes, expressar emoções também é uma forma de aliviar o sofrimento, sobretudo o sofrimento psicológico existencial, que é tão difícil de atingir e de tratar e para o qual não existem medicamentos nem fórmulas propriamente científicas, estudadas ou claramente eficazes”. E é aqui que “a música funciona como um veículo precisamente para o alívio desse sofrimento”, para os doentes e também para as suas famílias.

“O projeto da SAMP também envolve a família e nós sentimos que eles conseguem chegar muitas vezes a um sítio onde nós não conseguimos chegar e ficamos felizes que isso aconteça. Gostamos de ver a cara de satisfação ou expressão de satisfação dos nossos doentes quando recebem uma sessão. Às vezes [doentes], não nos dizem, mas nós sabemos o efeito que tem e transformam-se completamente”, salientou Ana João Carvalho.

Esta responsável recordou uma doente que, “espontaneamente” começou a “cantar com os músicos da SAMP sem ninguém ter pedido e era uma doente que já tinha muitos períodos de confusão, que às vezes era difícil comunicar com ela”.

“Eles conseguiram chegar até ela de uma maneira que nós não conseguimos. Nem sempre temos uma expressão direta, mas temos expressões diretas e indiretas do benefício que a SAMP traz aos utentes da nossa unidade”, destacou.

Raquel Gomes, David Ramy e Umberto Giancarli transportam os instrumentos que vão levar vida aos doentes em fim de vida. São utentes que sofrem, muitas vezes, em silêncio e que escondem a dor que carregam sozinhos. A dor física, mas também a dor da solidão.

 

“Não estamos com a morte. Levamos vida”

 

A vida termina num último suspiro e o projeto ‘Aqui contigo – O som como último colo’ procura estar com as pessoas e dar-lhes qualidade e um pouco mais de alento num momento difícil. Momento que é difícil para os doentes e para a própria família.

“Não estamos com a morte. Nós levamos vida e vamos ter com pessoas com vida. Infelizmente, não é o olhar geral. Quando procurávamos apoios para este projeto, muita gente dizia que não ia apoiar um projeto que fala de morte. Era frustrante. Estas pessoas estão com vida e não é justo terminarmos este ciclo abandonados e desprezados. É como ‘já não precisamos de ir a ti porque já não votas’”, apontou a coordenadora do projeto da SAMP, Raquel Gomes. A artista salientou que o objetivo é “estar com as pessoas”.

“Estou consciente de que estou aqui e de que vou partir para um sítio que eu não conheço. Tenho medo e estou sozinha. Queremos estar nesta hora com estas pessoas. Não é justo, na hora que considero mais importante da nossa vida, estarmos ali num canto”, acrescentou.

Também David Ramy considerou que “este é um projeto de vida, onde importa que até ao último suspiro dessa pessoa ela esteja consciente de que está viva”. “Nós bebemos de si e eles bebem de nós. E, em 99,9% das vezes, nós vamos muito mais cheios do que aquilo que deixamos”, sublinhou.

“Sinto que faz a diferença no meu percurso de vida. Este é o projeto que me levou mais intensamente para Portugal e a sair daquela que era a minha rotina de violetista do estudo clássico. Levar aquilo que aprendi para outras pessoas é um privilégio. A música leva as pessoas para outros sítios, para outras dimensões, mas, neste caso, isto acontece de forma muito mais amplificada”, reconheceu.

Além do projeto levar música ao hospital, também vai a domicílios. José Manuel Oliveira está acamado. O sorriso enche-lhe a cara quando os elementos da SAMP invadem com a música o seu quarto na Marinha Grande. O tema de Tony de Matos ‘Cartas de Amor’ é trauteado pelo doente e acompanhado pela sua mulher, Fátima Silva, para quem a visita da SAMP é uma lufada de tranquilidade.

“Fico com uma paz muito grande. O meu marido também. Acho que todas as pessoas deviam ter este bocadinho que nós temos, porque é bom para toda a gente. No caso do meu marido, estar na cama, não ter mais nada…. É um bocado duro eu estar a vê-lo a sofrer. Eles vindo, conversamos, acabo por cantar com eles e fico tranquila. Alivia muito”, reconheceu Fátima Silva, com os olhos a brilhar após mais um momento de alegria que quebra a monotonia dos seus dias de cuidadora.

“Algumas destas pessoas já não verbalizam, mas comunicam sempre de alguma forma, com um gesto, com um olhar, com a lágrima que escorre, com a mão que agarra e não solta. Lidar com estas pessoas é aprender imenso, é perceber o que é que efetivamente importa na vida, o que andamos cá a fazer e onde é que estamos a desperdiçar o tempo. E são eles que nos ensinam. Por isso, este é um momento muito especial para eles e para nós”, reforçou Raquel Gomes.

Paz e serenidade são demonstrados, mesmo por quem não fala, através de uma respiração que começa a ficar mais tranquila à medida que o som ecoa. Um leve sorriso nos lábios, um simples fechar de olhos ou uma lágrima que de repente corre numa face marcada pela dureza de uma doença incurável são evidências de como cada um está a apreciar o momento.

“Obrigado”, diz quem ainda consegue falar um pouco, ao mesmo tempo que limpa os olhos, marejados pelo momento de beleza proporcionado pelas notas que entoam do violino de Umberto, da guitarra de David e da voz e dos instrumentos de percussão de Raquel.

SO/LUSA

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