Projeto de big data visa ajudar doentes com esclerose lateral amiotrófica e esclerose múltipla
Mamede de Carvalho é neurologista e responsável pela Consulta de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), mais propriamente no Hospital de Santa Maria. Em entrevista ao SaúdeOnline dá a conhecer o projeto BRAINTEASER, que tem como objetivo integrar dados que permitam uma resposta mais personalizada a doentes com esclerose lateral amiotrófica e esclerose múltipla.
Em que consiste o BRAINTEASER?
O BRAINTEASER é um projeto de data science que visa explorar o valor de big data no cuidado de pacientes com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) e Esclerose Múltipla (EM). A ELA e a EM são duas doenças neurológicas muito complexas em termos de expressão clínica, evolução, processo de diagnóstico, prognóstico e tratamentos muito diferentes. No entanto, têm em comum o facto de serem doenças crónicas que afetam o sistema nervoso, com impacto negativo na qualidade de vida dos pacientes, incluindo a vida pessoal, familiar, profissional e económica, assim como com impacto negativo em todos os cuidadores.
Devido a ambas as doenças condicionarem impacto na mobilidade, embora mais severo e rápido na ELA, o potencial de instrumentos de monitorização da doença por via remota é de grande valia, permitindo com maior conforto dos doentes um acompanhamento próximo e objetivo. Desta forma, possíveis complicações agudas poderiam ser mais rapidamente conhecidas pela equipa clínica, propiciando intervenções oportunas de forma mais célere. Para mais, os dados de tal processo de monitorização permitiriam um melhor conhecimento da história natural destas doenças, quanto ao seu perfil evolutivo e eventos mais determinantes.
Por outro lado, o potencial impacto negativo de fatores ambientais menos satisfatórios, como a poluição do ar, tem sido um tema relevante quanto ao interesse clínico. A possibilidade de estudar a associação entre este possível fator de risco e a progressão da EM e da ELA, em particular quanto a eventos determinantes, como a insuficiência respiratória na ELA, é certamente assunto do maior interesse.
O BRAINTEASER pretende integrar um grande conjunto de dados clínicos e ambientais (estes registados por um sensor portátil específico, que acompanha o doente na sua rotina e deslocações), com dados fisiológicos dos doentes colhidos através de sensores de baixo custo (como um relógio “smart-watch”) e registados nas aplicações informáticas desenvolvidas (integradas no telemóvel pessoal). A proposta é de que este grande conjunto de dados permitam o desenvolvimento de ferramentas de Inteligência Artificial capazes de atender às necessidades atuais da medicina personalizada, permitindo a previsão precoce do risco de rápida progressão da doença e de eventos adversos. As ferramentas desenvolvidas no projeto seguirão abordagens centradas no utilizador, tendo em consideração as necessidades técnicas, médicas, psicológicas e sociais de cada doente. Adicionalmente, este avanço poderá trazer uma nova compreensão dos processos envolvidos no agravamento clínico, permitindo estabelecer estratégias de prevenção. Uma vez validado, estes instrumentos poderão ser usados em futuros ensaios clínicos na procura de tratamentos mais eficazes.
O sistema desenvolvido fornecerá evidência quantitativa dos benefícios e eficácia do uso da IA na área da saúde, num ambiente clínico real. O BRAINTEASER pretende, desta forma, apoiar uma transição das abordagens de saúde atuais de reativas para preditivas, promovendo uma maior qualidade de vida para pacientes e cuidadores pelo maior tempo possível. O projeto BRAINTEASER é liderado pela Universidad Politécnica de Madrid (UPM). Inclui vários parceiros da área clinica, a Università degli Studi di Torino (UNITO), o Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM-JLA)/Centro Académico de Medicina de Lisboa, o Servicio Madrileño de Salud (SERMAS) e a Fondazione Istituto Neurologico Nazionale Casimiro Mondino (MNDN-PV). Inclui vários parceiros da área da IA, para além da instituição que lidera o projeto (UPM), Università degli Studi di Padova (UNIPD), e FCIÊNCIAS.ID Associação para a Investigação e Desenvolvimento de Ciências (FC.ID). Outros parceiros respeitam o desenvolvimento de software, Belit d.o.o. (BELIT); desenvolvimento de plataformas web, InSilicoTrials Technologies S.p.A (IST); desenvolvimento de ecossistemas digitais na saúde, ECHAlliance Company Limited by Guarantee (ECHAlliance); e promoção de estudos científicos em áreas neurológicas, The European Brain Council AISBL (EBC).
Em que fase está?
O projeto BRAINTEASER teve início em janeiro de 2021 e terminará no final de 2024.Nesta fase, o projeto recruta doentes e recolhe os seus dados, sem prejuízo da contínua melhoria técnica quanto aos instrumentos e algoritmos de análise. Alguns dados já estão abertos para a comunidade científica internacional.
“As mais valias são (1) o acompanhamento mais próximo e contínuo dos doentes e seus cuidadores, prevenindo a necessária periodicidade das consultas hospitalares”
Quais as suas mais-valias para os doentes?
As mais valias são (1) o acompanhamento mais próximo e contínuo dos doentes e seus cuidadores, prevenindo a necessária periodicidade das consultas hospitalares; (2) perceção mais rápida de eventos e situações clínicas mais complexas que possam requerer uma intervenção mais atempada por parte da equipe médica; (3) maiores oportunidades de inclusão em ensaios clínicos de novos medicamentos, com maior probabilidade de ser encontrado um efeito positivo; (4) e satisfação na participação num estudo científico que, potencialmente, condicionará as vantagens acima enunciadas.
Em termos de investigação, de que forma este projeto pode ser um passo importante para os clínicos?
Permite o desenvolvimento de algoritmos de inteligência artificial suportada em big data para o reconhecimento de informação clínica desconhecida, que permita um tratamento e cuidados mais eficazes e personalizados a cada doente.
“Apenas o médico, neste caso eu em Portugal, conhece os doentes incluídos”
Um dos determinantes que pretendem estudar é a relação entre a IR e a poluição do ar. Pode-se dizer que este tipo de investigação, com base nas tecnologias mais avançadas, vai permitir alargar o campo investigacional, tornando-o mais holístico?
Sim. Em ambas as doenças estudadas, fatores ambientais são considerados como relevantes para a origem e progressão das doenças. Neste sentido, a sua investigação de forma sistemática e quantitativa poderá fornecer elementos muito relevantes.
Quando se fala em big data e IA, surgem alguns receios, nomeadamente no que diz respeito à segurança. Existem, de facto, riscos associados a este projeto?
O projeto respeita as normas europeias e de cada país, relativamente à proteção de dados. Os doentes são codificados de forma arbitrária por um sistema informático, de forma que elementos identificativos como o nome, morada, código-postal completo, data de nascimento e outros, sejam substituídos por um código. Apenas o médico, neste caso eu em Portugal, conhece os doentes incluídos. Os dados são “misturados” com um número gigantesco de dados de outros doentes e analisados por algoritmos matemáticos pela computação. Mais fácil identificar a galinha que colocou um ovo da nossa omelete.
MJG
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