31 Ago, 2022

“A abordagem da dor tem de passar por equipas multidisciplinares nos CSP”

Fundador da IM3M, Hugo Ribeiro é coordenador da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Gaia e especialista em Medicina Geral e Familiar. Em entrevista fala sobre o impacto da dor e sobre a escassez de respostas nesta área.

A dor ainda é um ‘parente pobre’ na Saúde?

Existem três grandes lacunas. Em primeiro lugar, não se vê a dor como um problema de saúde pública, quando o é de facto. A dor crónica afeta 40% da população portuguesa, o que é realmente significativo. Infelizmente, também ainda não temos respostas adequadas de apoio para os doentes, sobretudo na proximidade, e na  formação pré-graduada não se aposta nesta área.

Quando me refiro à formação, não me cinjo apenas aos cursos de Medicina, mas também de Enfermagem, Psicologia, entre outros.

É preciso mudar esta realidade, porque a dor obriga a um investimento direto, anual, de cerca de 3 mil milhões  de euros por parte do sistema de saúde. Os custos indiretos são enormes, com aumento do absentismo laboral, presenteísmo, maior prevalência de depressão, perturbações da ansiedade e do sono, entre outros.

Na IM3M temos investido muito na formação pós-graduada, com cursos muito práticos, para que se possa dar outra resposta aos muitos doentes que vivem com dor. É essencial pensar no tratamento multidisciplinar da dor para reduzir o sofrimento das pessoas e também para reduzir custos desnecessários.

“A dor é sempre multidimensional, daí ser obrigatória esta abordagem multidisciplinar”

 

É paliativista e foi também até há dois anos médico de família. Quais são os principais desafios que se enfrenta no tratamento da dor?

No autorrelato do doente, se não soubermos caracterizar bem a dor e diferenciar os alvos terapêuticos não vamos conseguir dar a resposta mais adequada. É preciso haver uma atualização anual das novidades neste campo, tal como acontece com a diabetes, a hipertensão, as doenças cardiovasculares, etc.

A Medicina da Dor é uma área vastíssima que implica conhecimento de farmacologia, mas não só. É fundamental saber trabalhar em equipa multidisciplinar, porque existem muitas terapêuticas, não somente farmacológicas. Existem tratamentos para a dor crónica, por exemplo, e que fazem toda a diferença, como é o caso da psicoterapia, da terapia cognitivo-comportamental ou da fisioterapia. E para todas elas existe evidência científica robusta.

 

A dor é também algo muito subjetivo…

A dor é sempre multidimensional, daí ser obrigatória esta abordagem multidisciplinar. O autorrelato é muito importante, mas também a observação, a linguagem não-verbal. Quando a dor se alastra ao longo de meses, deixamos de ter um estímulo nociceptivo, um dano real ou potencial, e a sua interpretação pode ser a causa ou a consequência de outros problemas, como a depressão, a ansiedade, perturbações de sono, até conflitos laborais e familiares…

 

Mas por que razão ainda não se aposta na formação pré-graduada se é um problema de saúde pública?

O que noto é que os programas curriculares ainda estão muito aquém das verdadeiras necessidades reais de um médico…. Por exemplo, o médico de família deveria responder à agenda do doente, mas acaba por se focar na sua própria agenda, centrando-se no controlo de determinadas patologias crónicas. Isto faz sentido, obviamente, mas é preciso ir mais além.

 

“A abordagem da dor tem de passar no futuro por equipas multidisciplinares nos cuidados de saúde primários”

 

Sendo assim, na prática clínica, não deve ser fácil trabalhar de forma multidisciplinar.

Não! A abordagem da dor tem de passar no futuro por equipas multidisciplinares nos cuidados de saúde primários, ou seja, tem de haver respostas na proximidade. Não podemos esquecer que 40% da população portuguesa tem dor crónica! É impossível ter unidades de tratamento de dor hospitalares que respondam de forma fácil a tantos doentes.

… a dor não controlada pode ser a causa de um conflito laboral ou familiar”

 

E existem condições para isso aconteça face à sobrecarga de que se queixam os médicos nos CSP?

A questão é essa… Têm que ser tomadas medidas, porque como estão as coisas hoje em dia, o médico de família acaba por se ter de cingir sobretudo ao controlo de doenças crónicas. O médico de família é a primeira porta de entrada para tudo!

Repare-se que apenas 5% dos doentes com dor necessitam de uma técnica invasiva, logo só estes é que deviam ser seguidos em consulta hospitalar. Os restantes podem e devem ficar nos CSP, mas não com as condições atuais. A ideia de se ter uma resposta na proximidade não é um custo, mas um investimento na qualidade de vida das pessoas, com o consequente retorno social e económico. Os sistemas de saúde mais desenvolvidos são os que apostam em prevenção e em CSP fortes. São aqueles que evitam que as pessoas recorram a hospital de agudos, onde há mais custos associados.

Além disso, o médico de família consegue ter uma visão muito mais global da história clínica e do contexto socioeconómico dos seus utentes. Como já referi, a dor não controlada pode ser a causa de um conflito laboral ou familiar.

A IM3M também promove formação em Geriatria e Cuidados Paliativos. Este conhecimento em dor é também importante para os mais idosos e para quem está com uma doença grave.

A IM3 quer ser uma ponte entre estas três áreas: Dor, Geriatria e Cuidados Paliativos. Em cada uma temos que olhar para a pessoa, porque não são todas iguais. É preciso ver o doente como único, conhecer a farmacologia, a fisiologia do envelhecimento e a fisiopatologia das doenças. A personalização da terapêutica é fundamental, mas ainda mais o é o bem-estar do indivíduo. Pode-se conseguir controlar a diabetes ou qualquer outra patologia crónica, mas o utente não fica satisfeito se não tratarmos a dor no joelho.

Não basta tratar, deve-se cuidar…

Sim! Tratar esse joelho, além da diabetes, vai melhorar inclusive a comunicação e a relação de confiança médico-doente. Mas para isso temos que trabalhar em  equipa multidisciplinar, não esquecendo a importância das comunidades. No futuro, a evolução social e civilizacional passa por se recuperar valores do passado, como as relações de vizinhança.

SO

 

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