HPV. “O desafio atual são as mulheres não vacinadas e as que não fazem rastreio”

Daniel Pereira da Silva, ginecologista no Hospital CUF Coimbra e no Instituto Médico de Coimbra, fala sobre os avanços importantes no combate à infeção por HPV no âmbito do Dia Internacional da Consciencialização sobre HPV, que se assinala no dia 4 de março. E alerta também para a necessidade de se adotarem estratégias para se ir ao encontro das mulheres não vacinadas.

Muito tem evoluído no combate ao HPV. Atualmente, quais são os maiores desafios?

Sem dúvida, a evolução foi muito significativa. O rastreio de base populacional teve início na região centro do país em 1990 e nessa altura o panorama nacional era muito constrangedor no contexto de um país europeu. A maior parte dos casos eram avançados, não havia prevenção, nem programa de diagnóstico precoce. O rastreio organizado ou o chamado rastreio oportunístico foi-se estendendo por todo o país. Nem sempre o fizemos ou fazemos de forma exemplar, mas a ideia foi passando. As mulheres, mesmo as dos meios mais recônditos, queriam fazer o “Papanicolao”, às vezes até pronunciavam o nome de forma errada, com graça, mas a ideia estava lá.

Pouco a pouco, o país foi coberto por programas de rastreio, embora na região de Lisboa e Vale do Tejo tenha sido sempre mais complicado. Depois veio a vacina em 2009 e foi uma explosão de entusiamo, apesar dos céticos habituais. O HPV passou a estar na ordem do dia. Primeiro foi denominada de vacina contra o cancro do colo do útero e mais tarde, e bem, a vacina contra HPV, porque a evidência foi crescendo a afirmar o envolvimento do HPV em lesões benignas, pré-malignas  e malignas da mulher e do homem. A vacinação começou nas raparigas, foi e é um êxito, com uma taxa de participação fantástica, acima dos 90%. Depois veio o conceito da neutralidade de género e foram incluídos os rapazes, mais um passo de grande importância.

Hoje, na região centro, o cancro invasivo do colo do útero é um tumor raro, o que é maravilhoso, e isso é um facto por todo o país na população vacinada e que faz o rastreio de forma regular. Mas há franjas da nossa população onde isso não acontece… Um dos grandes problemas da atualidade no nosso país são as populações migrantes, que não foram vacinadas e não fazem rastreio, repetem o que víamos nos anos 90 quando iniciámos o rastreio. Aparecem com situações avançadas, quando já são sintomáticos! Esse é o grande desafio atual, ter uma estratégia dirigida à população não vacinada e que não faz rastreio.

 

A pandemia afetou os rastreios. Considera que já podemos falar em retoma total ou existem assimetrias regionais? 

A pandemia afetou todo o nosso sistema de saúde. Tivemos de fazer face a um tsunami sanitário e os rastreios ficaram para trás, por razões que se compreendem. Estamos a sofrer as consequências do que vivemos e da falta de planeamento. É uma avalanche de problemas em contraponto à escassez e saturação dos recursos, em particular dos recursos humanos. Vivemos anos de desinvestimento, de estímulos contraditórios público/privado, que teve a pandemia como agente catalisador. A retoma ainda não se fez e a recuperação não me parece possível. Estamos e continuaremos a pagar as consequências. Na minha opinião, há que assumir a situação atual, otimizar os recursos disponíveis, criar estímulos aos profissionais de saúde do SNS e olhar em frente na procura soluções estruturais de médio/longo prazo. Quero acreditar que essa mudança vai ser uma realidade.

“A substituição da citologia pelo teste ao HPV, como teste de rastreio primário, foi um avanço muito importante, porque a realização do teste ao HPV pode ser automatizada, não é subjetivo como a citologia”

Cada vez se fala mais da importância do teste ao HPV nos rastreios em vez de citologia. Como está a ser implementada esta indicação em Portugal? 

A substituição da citologia pelo teste ao HPV, como teste de rastreio primário, foi um avanço muito importante, porque a realização do teste ao HPV pode ser automatizada, não é subjetivo como a citologia e um teste negativo dá uma segurança à mulher muito superior à citologia, daí que só tenha de ser repetido de 5 em 5 anos quando é negativo. No entanto o teste ao HPV tem alguns problemas, porque um teste positivo apenas significa isso mesmo, que o HPV está presente, tenha-se ou não integrado na célula, seja ou não capaz de provocar doença. Sabemos que o tipo de HPV é importante, o 16 e o 18 são mais agressivos, mas, felizmente, a maior parte das situações são pelos outros tipos. A maioria dos casos de testes positivos, são meros incidentes, são deposições ou desaparecem espontaneamente. O problema é que há casos em que isso não acontece e, hoje, o foco da investigação está nesse ponto – identificar as situações em que o risco do aparecimento de uma lesão pré-cancerosa seja significativo. Nós precisamos de marcadores mais precisos do potencial evolutivo de uma determinada situação, o teste ao HPV gera muito alarmismo e uma grande sobrecarga assistencial.

 

Em termos de prevenção, como vê o facto de a vacina do HPV ter sido incluída no PNV?

Foi uma medida de grande alcance. Nós temos tradição na administração de vacinas, temos um plano nacional de vacinação muito bem estruturado e com resultados muito expressivos,  e mais uma vez o demonstrámos. O esquema de vacinação contra o HPV não é tão fácil de implementar, porque são esquemas diferentes conforme sejam crianças – raparigas e rapazes – dos 9 aos 14 anos em que administramos 2 doses ou adolescentes com 15 anos ou mais anos e adultos que são necessárias 3 doses. Essas especificidades não afetaram os nossos resultados e temos taxas de participação das mais altas do mundo. Já estamos a ter resultados que decorrem dessa cobertura vacinal, porque a vacina é muito eficaz e por muito tempo, senão por toda a vida, além de ser muito segura.

“Uma mulher com teste negativo tem indicação para fazer a vacina e mesmo uma mulher que tem o teste positivo para este ou aquele tipo pode beneficiar da vacina para os outros tipos”

Aconselha as mulheres que não são abrangidas pelo PNV a fazer a vacina?

Aconselho. O HPV é um vasto grupo de vírus, dos quais nove são responsáveis por mais de 90% da carga de doença. Uma mulher com teste negativo tem indicação para fazer a vacina e mesmo uma mulher que tem o teste positivo para este ou aquele tipo pode beneficiar da vacina para os outros tipos, além de que esse vírus pode ficar num estado de latência subclínica e ser reativado mais tarde. A vacina pode fazer a diferença nesses casos. A questão deve ser posta à mulher, se quer ou não ser vacinada, assegurando que a vacina é extremamente segura e a única questão que se coloca para ela é o pagamento. Terá de ponderar, não tem nada a perder e pode ter ganhos para a sua saúde; o custo é uma questão de prioridade, de investimento na sua saúde. Outra situação em que a vacinação está indicada são as mulheres com lesão. Está demonstrado que a taxa de recidiva depois do tratamento é significativamente menor.

“… temos uma população mais carenciada, com graves problemas sociais e até de nutrição, que não teve acesso à vacina e não tem acesso ao rastreio”

E que outras medidas devem ser tomadas em termos de prevenção e que na sua opinião ainda não estão a ser alvo de atenção por parte da população?

A grande questão para as populações é terem consciência do risco que correm e o que vemos é contraditório com a evidência científica. Há uma faixa da população superpreocupada, para a qual um teste positivo ao HPV é uma doença terrível e não é assim; por outro lado, temos uma população mais carenciada, com graves problemas sociais e até de nutrição, que não teve acesso à vacina e não tem acesso ao rastreio. Muitos fatores se concentram nesses grupos, a que importa dar uma resposta estrategicamente dirigida.

 

No futuro, o que se pode esperar de novidades no que diz respeito a HPV?

Vão aparecer novidades na identificação das lesões com potencial evolutivo, mas julgo poder afirmar que hoje temos os instrumentos essenciais para controlar toda a carga de doença associada ao HPV: vacina e rastreio. Fizemos um bom percurso com o rastreio e um percurso muito bom com a vacinação. O desafio atual são as mulheres que estão fora do âmbito dessas duas estratégias: as não vacinadas e as que não fazem rastreio. Elas merecem que pensemos nelas, com uma estratégia eficaz!

LUSA 

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