Entrevista. “A infeção por HPV também afeta o pénis, o ânus e a orofaringe”

Maria Clara Bicho é professora do Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Lisboa. Desde há vários anos tem-se dedicado ao estudo da infeção por HPV, um problema de saúde que pode ser prevenido com vacinação, preservativo e equilíbrio da microbiota vaginal. Amanhã, assinala-se o Dia Internacional da Consciencialização sobre HPV.

Dedica-se ao HPV desde 1991. O que a levou a interessar-se por este vírus?

Comecei a trabalhar com a Dra. Maria do Carmo Ornelas, da área da Biologia. Como vim da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), apaixonei-me primeiramente pela Imunologia por causa do problema da pré-eclâmpsia. E porquê? Porque a pré-eclâmpsia também está muito relacionada com o sistema imunitário. A partir de então, comecei a ler e a ouvir umas coisas sobre Imunologia e patologia oncológica e achei que era um tema muito interessante. Acabei, entretanto, por sair da MAC e ir para o IPO de Lisboa, onde conheci a Dra Carmo e outras colegas que gostavam destas áreas. Juntas acabámos por descobrir mais sobre HPV, sobretudo queríamos estudar a possibilidade de um vírus estar envolvido no desenvolvimento do cancro do colo do útero.

 

Nos anos 90, a infeção por HPV era um flagelo para a mulher…

É verdade! Fiquei chocadíssima com mulheres muito jovens que chegavam à consulta já num estadio que obrigava à realização de uma histerectomia radical. Nós, médicos, não percebíamos exatamente o que podia estar por detrás desta neoplasia, daí ter avançado com alguma investigação. Fui a outros países ter contacto com pessoas muito interessadas nesta infeção e acabou-se por se saber que um vírus contribuía para o cancro do colo do útero.

“A incidência de casos de cancro do colo do útero diminuiu de forma significativa desde que se começou a vacinação”

E essa descoberta foi bem aceite?

Quando comecei em estudar a infeção com a Dra Carmo Ornelas, fomos mesmo consideradas ‘loucas’. Mas conseguimos trazer a Portugal os grandes nomes desta área de conhecimento no primeiro Congresso Internacional do HPV, em 1999. Nesse momento, a comunidade científica percebeu que de facto se devia investir mais nesta descoberta e, em equipa, foi possível criar uma vacina.

 

E a vacinação mudou o panorama..

Sem dúvida! A incidência de casos de cancro do colo do útero diminuiu de forma significativa desde que se começou a vacinação. Inicialmente, tentou-se integrar a vacina no Plano Nacional de Vacinação para ambos os sexos. Mas não havia verbas. Felizmente, os rapazes já podem ser vacinados hoje em dia. A infeção por HPV também afeta o pénis, o ânus e a orofaringe. E até no pulmão. Estão envolvidas cada vez mais especialidades em torno da infeção HPV.

 

A população ainda associa este vírus apenas à mulher?

Sim. Por exemplo, nas consultas, quando ambas os parceiros estão infetados, surge muito a questão de quem terá sido o responsável. Nessas situações explico sempre que o sexo é como uma pen drive no computador:  a pen drive pode conter vírus e o computador também. Gosto de brincar para desanuviar o ambiente…

“Na minha opinião, o rastreio – que é essencial –  deve ser incluir a citologia e o teste HPV. Sou também apologista de que é preciso fazer testes aos homens, incluindo na orofaringe”

Considera que já se está a recuperar os rastreios ao cancro do colo do útero após a pandemia?

Tanto quanto sei, sim. Na minha opinião, o rastreio – que é essencial –  deve ser incluir a citologia e o teste HPV. Sou também apologista de que é preciso fazer testes aos homens, incluindo na orofaringe. A prática de sexo oral é cada vez mais comum, daí esta necessidade de não nos cingirmos somente ao rastreio na mulher. Aliás, qualquer tipo de sexo: vaginal, oral, digital, anal. É preciso transmitir esta ideia. O médico deve falar sobre sexo com naturalidade e sem qualquer estigma e preconceito.

Falando de prevenção, o uso de preservativo já é mais aceite?

O problema está nos preliminares. As pessoas usam muitas vezes o preservativo somente no momento da ejaculação para prevenirem a gravidez. Mas antes não se evitou o contacto e pode-se transmitir o vírus. A vagina tem ume ecossistema genital muito próprio. Isto é, tem um pH ácido para não haver envolvimento de outros microrganismos. O pénis, por sua vez, tem um pH alcalino para permitir a fecundação. Mas, por vezes, pode haver um desequilíbrio do ecossistema da mulher, levando ao surgimento de infeções.

“Geralmente, aconselho as minhas pacientes a fazerem probióticos para que haja um equilíbrio na microbiota para evitar infeções. Também aconselho aos homens”

Aconselha outras medidas?

Costumo fazer uma avaliação do ecossistema vaginal para analisar o microbioma. Geralmente, aconselho as minhas pacientes a fazerem probióticos para que haja um equilíbrio na microbiota para evitar infeções. Também aconselho aos homens.

 

A Dra esteve no EUROGIN, o encontro internacional de HPV, que decorreu entre 8 e 11 de fevereiro, em Espanha. Que novidades se pode esperar na área da infeção por HPV?

Falou-se muito o aumento do cancro da orofaringe e do ânus por causa desta infeção. É preciso apostar-se mais na prevenção, inclusive nos países menos desenvolvidos, onde nem sequer existe vacina. Temos que trabalhar todos juntos, envolver diferentes conhecimentos, não esquecendo a Saúde Pública e a Investigação.

 LUSA

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