30 Mar, 2023

Entrevista. “Tem de haver uma aposta nos recursos humanos para não se ter um SNS para pobres”

Maior aposta nas condições de trabalho e um revisitar da reforma dos cuidados de saúde primários são dois pontos essenciais para se evitar a degradação do Serviço Nacional de Saúde, segundo Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF).

São 40 anos de APMGF. Que balanço faz destas décadas?

É uma data muito especial para a APMGF e também para a especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF), já que a sua história se confunde com a da Associação. Temos assistido a um grande desenvolvimento de uma especialidade que é reconhecida a nível nacional e internacional. A APMGF sempre lutou pela MGF e continua, ainda hoje, a estar do lado da solução e não do problema. Exemplo disso é a criação do Livro Azul em 1990 ou da ligação à reforma dos cuidados de saúde primários (CSP). Têm sido apresentadas muitas propostas para a revisão da reforma dos CSP e para a melhoria das condições de trabalho dos médicos de família. Lutamos assim por uma maior acessibilidade a cuidados por parte da população. São 40 anos de sucesso, apesar de nem sempre se ter conseguido o que consideramos ser a solução mais adequada. A MGF é, sem dúvida, uma especialidade crucial no sistema de saúde, em particular no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

 

Nestas quatro décadas criou-se a especialidade. Isso foi decisivo para se apagar a imagem negativa do clínico geral?

Foi uma evolução natural. Após o 25 de Abril e com a criação do SNS foi necessário apostar-se em cuidados de proximidade e naturalmente surgiram os clínicos gerais que, ao sentirem necessidade de maior diferenciação, levaram à criação da especialidade. Foi um passo muito importante, que permitiu, nomeadamente, melhorar os nossos indicadores de saúde. Tudo isto contribuiu para uma imagem positiva da MGF, que é é a especialidade-base do sistema de saúde.

“Atualmente, estamos novamente a viver um momento crítico, de charneira, mas temos a possibilidade de revisitar a reforma e de corrigir o que não correu tão bem”

A reforma dos CSP foi um passo importante. Mas face à situação difícil que hoje em dia se vê no SNS, o que sente quer como Presidente da APMGF quer como médico de família quando olha para a realidade?

Todos reconhecemos que a reforma dos CSP foi um momento crucial, um marco fantástico, que deu um grande impulso aos cuidados primários, de proximidade. O problema é que essa reforma, que foi muito bem pensada e construída, acabou por não ser implementada na sua totalidade. O ímpeto inicial foi-se perdendo, sobretudo por causa de questões políticas e económicas do País. A ideia inicial de maior autonomia e de transformação progressiva de unidades modelo A para B, o pagamento por desempenho, etc., foi esmorecendo. Na prática temos uma reforma implementada a diferentes velocidades. Atualmente, estamos novamente a viver um momento crítico, de charneira, mas temos a possibilidade de revisitar a reforma e de corrigir o que não correu tão bem, dando um impulso grande aos CSP. Caso isso não aconteça, vamos continuar como no presente e colocaremos em risco tudo aquilo por que se lutou. Como uma pessoa otimista, espero que se vá conseguir dar a volta à situação, garantindo condições aos médicos para que também a população tenha acesso a bons cuidados.

 

Acredita que o SNS se torne num SNS dos pobres?

Existe, de facto, esse risco. Está a ser muito difícil fixar os profissionais de saúde no SNS e essa deve ser a preocupação central neste momento. Os recursos humanos são absolutamente cruciais para se ter um SNS que funcione e preste cuidados de qualidade. Não me refiro somente aos médicos, mas também a enfermeiros, secretários clínicos, nutricionistas, psicólogos, entre outros. Infelizmente, os profissionais são sempre relegados para segundo plano; as carreiras são congeladas, não há progressão salarial, o reconhecimento é pouco por parte da tutela… Portugal não está a conseguir captar e fixar recursos humanos que ajudamos a formar no SNS e os que ficam são obrigados a apagar todos os fogos… Tem de haver uma aposta nos recursos humanos para não se ter um SNS para pobres.

“A carreira médica está estagnada e falta mais autonomia nos CSP, inclusive em coisas simples: adequar os horários às necessidades dos profissionais e das características da população, por exemplo”

Qual é a solução para se atrair e fixar mais médicos de família, sobretudo nas zonas mais carenciadas como Lisboa e Vale do Tejo e Algarve?

A questão salarial é fundamental, mas não é suficiente. Tem de haver vontade política, criando-se melhores condições. A carreira médica está estagnada e falta mais autonomia nos CSP, inclusive em coisas simples: adequar os horários às necessidades dos profissionais e das características da população, por exemplo. Os mais jovens querem cada vez mais apostar na investigação e no Ensino e as equipas têm de ser autónomas para dar resposta a essas necessidades. Note-se que a autonomia implica sempre responsabilidade… não estamos a fugir a isso. Existem diversas falhas: sistemas de informação, a inexistência de um processo clínico único, o excesso de burocracia, as más condições das instalações, a falta de material de consumo clínico… E, obviamente, é fundamental podermos contar com outros profissionais de saúde, porque o médico não trabalha sozinho, mas em equipa. São problemas complexos, que não se resolvem de um dia para o outro, contudo não se pode continuar a ‘tapar buracos’… E aliviar a burocracia não é transpor o problema para outros profissionais como se tenta fazer com a situação das baixas médicas de três dias, que ficam a cargo da Linha Saúde 24. O sistema tem de ser agilizado.

 

Um dos temas do Encontro é a MGF no setor privado. Qual é a posição da APMGF?

Essa oferta complementar deve existir. No setor privado também dever existir uma MGF de qualidade, forte e completa, em articulação com outras especialidades dos hospitais privados. O que não pode acontecer é as pessoas sentirem-se forçadas a ir ao privado por não terem resposta no SNS. Deve ser uma opção. A APMGF, enquanto associação que representa todos os médicos de família, espera que os médicos do privado também tenham as melhores condições de trabalho. Nos últimos anos, esse setor tem crescido muito e, mesmo a MGF, que era incipiente, é cada vez mais uma oferta nas unidades privadas. É bom que isso se mantenha e que haja uma lógica de complementaridade e não de oposição.

 

Relativamente à transferência de competências da Saúde para as autarquias, muitos municípios ainda não deram resposta. A APMGF está preocupada?

Sim, sem dúvida. Essa questão não pode ser encarada como um ‘sacudir água do capote’ das administrações regionais de saúde para outro nível diferente de hierarquia. Havendo essa transferência, os municípios têm de ser empoderados e ter os recursos para o fazer para que esta maior proximidade local possa trazer vantagens.

“Trabalhar em Évora não é o mesmo que na Baixa de Lisboa ou em Bragança… São realidades diferentes de pessoas que precisam de cuidados de saúde, nem que seja temporariamente” 

Até porque os desafios são cada vez maiores com o envelhecimento da população e com as comunidades imigrantes que não falam Português…

Sim, é verdade. Essas situações exigem maior flexibilidade das equipas e dos profissionais, daí a necessidade da tal autonomia. Trabalhar em Évora não é o mesmo que na Baixa de Lisboa ou em Bragança… São realidades diferentes de pessoas que precisam de cuidados de saúde, nem que seja temporariamente.  O envelhecimento é uma realidade global, que afeta todas as regiões e que também não se coaduna com listas de utentes sobredimensionadas, que dificultam a atenção que se deve dar aos mais idosos, com muitas patologias.

Em relação ao trabalho da APMGF, vão manter a aposta nos Grupos de Estudo?

Sim. São muito importantes, mesmo a nível da formação em áreas específicas.

Este ano têm nomes de peso no Encontro, como a Dra Iona Heath, o Dr. Shlomo Vinker e o escritor Mia Couto…

Isso mostra a realidade de sempre desta Associação, que sempre primou por ter uma ligação com sociedades congéneres, quer na Europa como até na América Latina. E obviamente mantemos contacto com entidades tão importantes como a WONCA; aliás, em 2025, o Congresso Mundial irá realizar-se em Portugal para mostrar Portugal e a MGF portuguesa ao mundo. A presença do escritor Mia Couto está relacionada com a ideia de que não vivemos só da Medicina, daí que tenhamos o Clube de Leitura da APMGF. Queremos promover a leitura e a visão humanista da Medicina. Recorde-se que Mia Couto estudou Medicina e que tem uma ligação à área da Saúde Mental.

LUSA

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