AVC pediátrico. “Cerca de metade das crianças que sofre um AVC isquémico tem uma doença de risco já conhecida”

Rita Lopes da Silva, neuropediatra no Hospital D. Estefânia, em Lisboa, alerta para a importância do diagnóstico atempado de AVC nas crianças e adolescentes. E apela um maior conhecimento deste problema de saúde que não afeta somente adultos.

Qual é a prevalência do AVC pediátrico?

O AVC pediátrico define-se como o que ocorre desde o final do 1.º mês de idade até aos 18 anos e a sua incidência é de 1.2 a 13 por 100.000 crianças. No AVC perinatal (ocorre desde 20.ª semana de gestação até ao 1.º mês após o nascimento), a incidência é mais elevada, sendo de 1 por 4000 nados vivos.

 

Em que situações ocorre o AVC?

Na idade pediátrica, as causas de AVC isquémico são diferentes do adulto, dado que a sua maioria não é devida a fatores de risco como hipertensão arterial, diabetes, hipercolesterolemia ou arritmias cardíacas, mas relacionada com doenças infeciosas, inflamatórias, cardíacas, doença falciforme, traumatismos, doenças genéticas ou metabólicas, entre outras causas. O AVC hemorrágico pode ser causado por rotura de aneurismas ou malformações vasculares, doenças hematológicas como a hemofilia, tumores cerebrais ou doenças genéticas.    

 

Quais os sintomas a que se deve estar atento? 

Os sinais e sintomas que nos fazem suspeitar de AVC são semelhantes aos adultos. Tal como tem sido divulgado pela Sociedade Portuguesa de AVC (SPAVC), perante a instalação súbita de algum dos 3 F (dificuldade em FALAR, assimetria na FACE ou falta de FORÇA num braço ou numa perna) devemos suspeitar de um AVC e ligar o número de emergência 112 para ativar a Via Verde. Outras manifestações de AVC podem ser cefaleia súbita intensa, perda de consciência ou crises epiléticas, dificuldade na marcha, alterações visuais, etc.

“Neste grupo etário existe habitualmente um atraso no diagnóstico muito significativo, dado que existe falta de informação sobre a possibilidade de ocorrer AVC em crianças e adolescentes”

Como se trata de crianças e jovens, alguns casos podem ser encaminhados tardiamente?

Neste grupo etário existe habitualmente um atraso no diagnóstico muito significativo, dado que existe falta de informação sobre a possibilidade de ocorrer AVC em crianças e adolescentes por parte dos familiares, educadores/professores e alguns profissionais de saúde. Para o atraso no diagnóstico, também contribui o facto de outras doenças que se podem apresentar da mesma forma, serem mais frequentes nesta idade. Minimizar o atraso até ao diagnóstico permite realizar tratamentos de fase aguda (nas primeiras horas) que melhoram o prognóstico de forma significativa.

 

Quais as sequelas mais comuns?

Após um AVC as sequelas mais comuns são motoras (falta de força num braço e/ou perna) e cognitivas (dificuldades de aprendizagem).  

 

Existem consultas específicas?

Na Unidade de Neuropediatria do Hospital de Dona Estefânia (HDE) – Centro Hospital Universitário de Lisboa Central existe, desde há mais de 10 anos, uma Consulta de Doenças Neurovasculares em idade pediátrica. Nesta consulta são acompanhadas crianças que já sofreram um AVC para completar a investigação da respetiva causa, selecionar o melhor tratamento e orientar para a Consulta de Medicina Física e de Reabilitação. São também seguidas crianças e adolescentes com doenças de risco para AVC, sendo assim possível instituir as medidas necessárias para a sua prevenção, sendo exemplo a consulta realizada em simultâneo com a Hematologia Pediátrica do HDE nos doentes com anemia de células falciformes.

“A Reabilitação deve ser iniciada durante os primeiros dias de internamento, assim que o doente estiver clinicamente mais estável e prolonga-se após a alta”

Relativamente à reabilitação, como avalia o acesso por parte dos doentes?

A Reabilitação deve ser iniciada durante os primeiros dias de internamento, assim que o doente estiver clinicamente mais estável e prolonga-se após a alta. Pode abranger áreas de intervenção tão diversas como a Fisioterapia, Terapia da Fala, Terapia Ocupacional e Psicologia e tem como objetivo a promoção da autonomia e funcionalidade. Em algumas regiões do nosso país existem dificuldades no acesso a terapeutas com experiência em idade pediátrica.

 

Na idade adulta deve haver alguma transição específica entre especialidades?

No final da adolescência deverá ser feita uma transição bem articulada dos cuidados para médicos de adultos com experiência no diagnóstico e tratamento do AVC. Para o sucesso desta transição, é também importante capacitar o adolescente e a família para a gestão das suas necessidades em termos de consultas, tratamento e exames complementares de diagnóstico de que necessita. 

 

Considera que se deve falar mais sobre AVC pediátrico, quer junto da população quer dos profissionais de saúde?

Cerca de metade das crianças que sofre um AVC isquémico tem uma doença de risco já conhecida, pelo que é fundamental sensibilizar estes doentes/famílias e educadores/professores para as manifestações clínicas que devem motivar a ativação da Via Verde, para permitir o acesso rápido ao tratamento mais adequado e assim melhorar o prognóstico funcional. Junto dos profissionais de saúde é igualmente importante promover ações de formação sobre o AVC pediátrico, para aumentar a sua capacidade de diagnóstico e possibilitar o acesso aos tratamentos de fase aguda. 

Nesta área, como em outras áreas da Medicina, existe uma melhoria significativa dos cuidados se for feita uma discussão em equipa multidisciplinar, neste caso englobando pediatras, neuropediatras, neurologistas/internistas com experiência no tratamento do AVC no adulto, neurorradiologistas, neurocirurgiões, cardiologistas pediátricos, etc.

Texto: Maria João Garcia

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