“A interligação entre a Ginecologia e a MGF na área da saúde da mulher pode ser significativamente melhorada”

As ginecologistas Cristina Nogueira-Silva e Maria João Carvalho destacam o papel da Medicina Geral e Familiar na saúde da mulher. Face aos avanços sentidos na Ginecologia nos últimos anos, as responsáveis pelo Congresso defendem mais formação e melhor integração entre ambas as especialidades.

“A interligação entre a Ginecologia e a MGF na área da saúde da mulher pode ser significativamente melhorada”

O que se pode melhorar para que se possa ter cada vez mais cuidados integrados e centrados na mulher?

Cristina Nogueira-Silva (CNS) – À semelhança de outras áreas da Medicina, existe uma assimetria no acesso aos cuidados de saúde a nível nacional, impedindo que muitas mulheres possam ter à disposição cuidados de saúde verdadeiramente integrados. Por isso, a redução da desigualdade no acesso aos cuidados seria relevante.

Além disso, a menopausa e a vida pós-menopausa são, a meu ver, a área que mais necessita de melhoria na atualidade. As mulheres vivem cada vez mais tempo após a menopausa e são cada vez mais ativas, pessoal e profissionalmente, nesta fase da vida. Por isso são mais exigentes (e ainda bem) e mais informadas. Temos, portanto, de melhorar a resposta que damos a esta necessidade, principalmente na desmistificação de várias falsas verdades que circulam entre as mulheres.

O envelhecimento é um processo fisiológico e tem de ser visto como tal. Podemos (e devemos) envelhecer com mais saúde e qualidade de vida, e nós médicos, de Medicina Geral e Familiar (MGF) ou Ginecologia, temos de para isso contribuir. E temos de estar preparados para abordar as falsas promessas de jovialidade que são propagadas na sociedade e nas redes sociais, os livros do século XXI, e ter tempo dedicado em consulta para tal.

Maria João Carvalho (MJC) – O grande desafio é a otimização do acesso. As pontes de referenciação, de forma eficaz e integrada, vêm sem dúvida melhorar todos os cuidados de saúde. A MGF faz uma abordagem primordial à mulher, desde a menarca à menopausa, conhecendo melhor que ninguém os grandes desafios. A Ginecologia do século XXI sofreu uma evolução tecnológica e científica no caminho de grande diferenciação. Assim, uma visão em conjunto das necessidades da mulher no século XXI vai criar oportunidades de enriquecimento mútuo que, em última instância, culmina numa melhoria dos cuidados prestados à mulher.

“O crescimento de infeções como a clamídia, gonorreia, sífilis e até mesmo o HIV exige ações urgentes”

Um dos temas abordados é a infertilidade. Fala-se em dificuldades de acesso, nomeadamente no SNS. A situação é muito preocupante?

MJC – A dificuldade de acesso a serviços de saúde no contexto da infertilidade é uma realidade penosa para muitos casais. Fatores como a falta de políticas públicas específicas, a escassez de centros especializados no sistema público de saúde e o alto custo dos tratamentos em clínicas particulares tornam o diagnóstico e o cuidado com a infertilidade inacessíveis para grande parte da população. Além disso, questões culturais e o estigma social relacionado à infertilidade podem agravar o problema, dificultando ainda mais a busca por ajuda médica e apoio psicológico adequado. Essas barreiras evidenciam a necessidade urgente de ampliar o debate sobre o tema e garantir um atendimento mais equitativo e inclusivo.

O adiamento da maternidade é uma tendência crescente nas últimas décadas, impulsionado por fatores sociais, económicos e profissionais. No entanto, essa decisão está associada a desafios biológicos, uma vez que a fertilidade feminina diminui com a idade, especialmente após os 35 anos, aumentando o risco de complicações na gravidez. Essa realidade evidencia a importância de políticas públicas que promovam a educação reprodutiva, o acesso a técnicas de preservação da fertilidade e o apoio à conciliação entre maternidade e vida profissional.

Atualmente, em Portugal, dispomos de dez centros de procriação medicamente assistida (PMA), quatro a norte, dois no centro, três na região de Lisboa e um na Madeira. Logo aqui se destaca uma desigualdade de distribuição pelo território nacional. Por outro lado, os centros privados têm crescido dada a grande necessidade de responder a estas situações, já totalizando 19 centros de acordo com o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.

CNS – O grande desafio, atualmente, para além da necessária otimização do acesso dos casais com infertilidade aos cuidados de saúde, reside na promoção ativa da fertilidade. Isto implica o desenvolvimento de ações educativas, preventivas e de acesso a cuidados médicos que contribuam para preservar a saúde reprodutiva da população. Entre as estratégias mais relevantes de educação em saúde, destaca-se a informação sobre o impacto negativo na fertilidade de infeções sexualmente transmissíveis (IST), obesidade, tabagismo, consumo excessivo de álcool e exposição a substâncias tóxicas. É, igualmente, fundamental sensibilizar para o efeito da idade na capacidade reprodutiva, promovendo decisões informadas.

Outra medida crucial é o alargamento do acesso a técnicas de preservação da fertilidade, especialmente em doentes com patologias que comprometem a função ovárica. Investir em políticas públicas que integrem estas ações no Sistema Nacional de Saúde é essencial para reduzir a incidência da infertilidade e garantir que cada pessoa possa fazer escolhas reprodutivas livres e esclarecidas.

Como veem a prorrogação da utilização de embriões resultantes de doações anónimas?

MJC – A doação de embriões consiste na doação de embriões excedentários provenientes de tratamentos de PMA por casais que não desejam utilizá-los. Ao manter o anonimato entre doadores e recetores, busca-se preservar a privacidade de ambas as partes, evitar possíveis conflitos legais e proteger a identidade dos futuros filhos gerados a partir desses embriões.

No entanto, essa abordagem também levanta questões éticas e legais, especialmente no que diz respeito ao direito à origem genética e à construção da identidade por parte dos indivíduos concebidos por essa via. A regulamentação desse tipo de doação varia amplamente entre os países, sendo essencial um equilíbrio entre o respeito à autonomia dos envolvidos, a proteção das crianças nascidas e a transparência nos processos reprodutivos assistidos.

“A MGF tem um papel fulcral nos cuidados integrados e na promoção da saúde da mulher, ao longo das diferentes etapas da vida reprodutiva. Por isso, os rastreios oncológicos estão totalmente no âmbito da sua ação”

As IST estão a aumentar, nomeadamente entre os mais novos. O que contribui para tal? Falta informação?

CNS – Não creio que em 2025 possamos considerar que existe falta de informação! Pode existir falsa informação, mas não falta! Há vários fatores que podem ser apontados para esse aumento. Por um lado, o início cada vez mais precoce da atividade sexual e de novas práticas sexuais, não poucas vezes associadas ao consumo de álcool e novas drogas. Depois há a referir as alterações demográficas ocorridas no nosso país, nomeadamente aumento da imigração de países com prevalência de IST superiores a Portugal, com consequente impacto nos indicadores de saúde. E há ainda a referir o acesso mais democrático a métodos de rastreio sensíveis, como é o caso do rastreio da clamídia.

MJC – De facto, as IST têm aumentado e estes dados merecem uma reflexão sobre a disseminação destas infeções. Além disso, o avanço da tecnologia e o uso de novos formatos para encontros casuais, muitas vezes sem a adoção de medidas preventivas adequadas, são uma realidade que tornam desafiante o aconselhamento. O crescimento de infeções como a clamídia, gonorreia, sífilis e até mesmo o HIV exige ações urgentes, como campanhas educativas, ampliação do acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento e políticas públicas que promovam a saúde sexual de forma abrangente. A abordagem integrada e contínua dessas medidas é fundamental para conter a propagação das IST e reduzir os impactos na saúde individual e coletiva.

A partilha de informação clínica atualizada entre os dois níveis de cuidados, por meio de registos eletrónicos acessíveis e integrados, facilitaria o acompanhamento contínuo e personalizado.

Relativamente aos rastreios oncológicos, quais consideram ser as principais mensagens para os médicos de família?

CNS – A MGF tem um papel fulcral nos cuidados integrados e na promoção da saúde da mulher, ao longo das diferentes etapas da vida reprodutiva. Por isso, os rastreios oncológicos estão totalmente no âmbito da sua ação. Em Portugal, temos um rastreio organizado do cancro da mama e do cancro do colo do útero, com provas dadas no diagnóstico precoce e redução da mortalidade associada a estas patologias. As diretrizes nacionais destas duas patologias foram revistas recentemente, por isso é essencial abordá-las, consolidar as principais diferenças e as mudanças que trazem no follow-up, perante alterações. Tal é, de facto, de especial relevo no cancro do colo do útero, como teremos oportunidade de abordar no Congresso.

 

Na vossa perspetiva, o que pode melhorar na interligação entre Ginecologia e Medicina Geral e Familiar na área da saúde da mulher?

CNS – Há muitas situações do foro ginecológico que podem (e são) facilmente orientadas e tratadas pelos cuidados de saúde primários. O nosso sistema de saúde está assente na Medicina Geral e Familiar como primeira linha de cuidados e devemos, por isso, tornar este pilar o mais autónomo e eficaz possível. Tal só será possível, no meu ponto de vista, se se cumprirem alguns princípios. O primeiro é a formação. A Ginecologia (e também a Obstetrícia) sofreram grande evolução nos últimos anos, desde o diagnóstico, às estratégias terapêuticas.

Há muito a partilhar e a atualizar sobre IST, infertilidade e sua orientação, contraceção, orientação da mulher em idade menopáusica e novidades em Portugal, relativamente a rastreios oncológicos. E em segundo lugar, é essencial criarem-se canais de comunicação facilitada. A definição mais clara e facilmente acessível de critérios de referenciação e algoritmos de orientação podem ajudar. Além, logicamente, de canais concretos a nível local. Acredito que este congresso pode colaborar para essa interligação, cumprindo um papel na formação e na comunicação entre especialidades.

MJC – Na nossa perspetiva, a interligação entre a Ginecologia e a MGF na área da saúde da mulher pode ser significativamente melhorada através de uma comunicação mais eficaz, protocolos de encaminhamento bem definidos e uma abordagem colaborativa centrada na paciente. A partilha de informação clínica atualizada entre os dois níveis de cuidados, por meio de registos eletrónicos acessíveis e integrados, facilitaria o acompanhamento contínuo e personalizado. Reuniões multidisciplinares, linhas de apoio direto entre especialidades e a inclusão de planos terapêuticos partilhados são estratégias promissoras. O fortalecimento dessa articulação contribui para um cuidado mais completo, eficiente e centrado nas necessidades reais das mulheres.

 

Maria João Garcia

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