16 Ago, 2021

Rui Baptista. “Insuficiência cardíaca está subdiagnosticada e subtratada”

De acordo com o diretor do Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, "a identificação da insuficiência em ferro e a sua correção com ferro endovenoso é, claramente, uma estratégia interessante para estes doentes”.

Foto: NewsFarma

Quais são os principais desafios no tratamento do doente com IC?

O primeiro desafio começa logo no diagnóstico. Em termos clínicos, o diagnóstico da IC não deveria ser algo muito complexo, dado que se trata de uma síndrome muito comum. É uma condição com que nos cruzamos frequentemente enquanto internistas ou médicos de família. Aliás, a maior parte das especialidades cruza-se com este diagnóstico frequentemente.

Além disso, a ferramenta de diagnóstico usada, o ecocardiograma, é de fácil acesso, de baixo custo e pode dar as respostas diagnósticas que necessitamos. O desafio passa por fazer chegar esta ferramenta diagnóstica aos doentes que podem sofrer da síndrome. Muitas vezes, como as queixas são um pouco inespecíficas – fadiga, edema nos membros inferiores, cansaço, falta de ar – acabam por passar nas malhas [de outras doenças] e na verdade é um princípio para uma das formas de insuficiência cardíaca, a insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida, a qual o ecocardiograma, enquanto exame amplamente disponível, faria o diagnóstico.

A outra questão é que nos doentes com IC com fração de ejeção preservada o diagnóstico pode ser um pouco mais difícil, não tanto o diagnóstico clínico – o doente está inchado, tem edemas, tem queixas – mas, no ecocardiograma, infelizmente, as ferramentas que nos permitem fazer o diagnóstico não são comparticipadas pelo SNS. Isto faz com que a capacidade de diagnóstico do ecocardiograma acabe por não ser utilizada em toda a sua extensão e poderá fazer, seguramente, com que alguns diagnósticos fiquem por fazer.

Hoje também temos um biomarcador, o BNP, que tem uma sensibilidade muito alta e é muito bom para excluir o diagnóstico. A verdade é que, apesar de este biomarcador estar amplamente disponível a nível hospitalar, não está disponível nos cuidados de saúde primários.

O segundo desafio é o da implementação. Isto é, nós temos um enorme conjunto de estratégias farmacológicas que nos vários registos internacionais comprovaram a eficácia e essas estratégias farmacológicas, muitas delas baratas, não chegam a quem delas necessita. Há uma grande porção de doentes que não estão a tomar os fármacos.

Se são terapêuticas acessíveis, por que motivo os doentes não têm acesso a elas?

Esse é um problema internacional. O facto de a IC ser uma síndrome muito comum faz com que haja, paradoxalmente, uma grande dispersão dos médicos que tratam a síndrome e isso faz com que haja uma heterogeneidade de cuidados e uma grande discrepância entre o tratamento dos doentes.

Algumas destas estratégias terapêuticas têm efeitos secundários que são perfeitamente mitigáveis, mas faz com que haja um certo medo em implementá-las. Além disso, não são estratégias terapêuticas de shoot and forget, não se dá ao doente e não se vê mais o indivíduo. São estratégias terapêuticas que obrigam a subidas de dose, a análises para vigiar a função renal e os iões e tudo junto faz com que a sua implementação seja menos frequente.

Por exemplo, a espironolactona, que custa um euro por mês, mais de 50% dos doentes com indicação não a estão a tomar, o que é uma pena porque é um fármaco que reduz a mortalidade.

Sendo uma síndrome mais comum em faixas etárias mais elevadas, que desafios se colocam quando tem de se tratar doentes com IC e várias comorbilidades?

Essencialmente, há uma distribuição bimodal de doentes. Temos um grupo de doentes com a idade a rondar os 65 anos, que são os doentes habitualmente incluídos nos ensaios clínicos, e estes doentes têm só a doença que lhes causou a IC.

Depois, temos outro grupo, mais idoso, em que a forma predominante é a IC com fração de ejeção preservada. Neste grupo as comorbilidades tornam-se mais evidentes, nomeadamente a deficiência em ferro, a doença pulmonar obstrutiva crónica, a diabetes, a depressão, a síndrome de fragilidade, a insuficiência renal e torna-se complicado tratar a IC.

Falou na deficiência de ferro. Que implicações tem na IC, nomeadamente ao nível dos internamentos?

A deficiência em ferro é uma comorbilidade comum nos doentes com IC, que sem sempre se faz acompanhar de anemia. Pode ser diagnosticada muito facilmente com a ferritina e a saturação da transferrina e com estas análises nos conseguimos identificar um grupo de doentes que pode beneficiar com a suplementação endovenosa de ferro.

A suplementação endovenosa de ferro é um tratamento que tem de ser feito em ambiente hospitalar, e é um procedimento de rotina a nível hospitalar, que acaba por ser importante para os doentes, não só porque poderá melhorar alguns parâmetros hematológicos que são tardios na IC, mas, principalmente, porque melhora a capacidade funcional do doente, não só do miocárdio como também na utilização do oxigénio.

Isto faz com que o doente melhore a sua capacidade funcional e reduza os internamentos por IC. São resultados interessantes e funciona como mais uma das peças que precisamos para montar o puzzle do tratamento completo e compreensivo da IC.

A identificação da insuficiência em ferro e a sua correção com ferro endovenoso é, claramente, uma estratégia interessante para estes doentes.

SO

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