Políticas para o sistema de saúde
Healthcare Manager, PhD

Políticas para o sistema de saúde

Introdução

Há mais de duas décadas que a falta de médicos é apontada como a causa principal da disfunção do setor da saúde, sendo frequentes as notícias de serviços de urgência que fecham, chefes de equipa que se demitem, longas jornadas de trabalho com médicos esgotados, etc. Assumida a falta de médicos, os Governos orientaram cada vez mais recursos para a formação. Porém, o número insuficiente de médicos continua e o incremento na formação também.

Acresce que, apesar da alegada falta de médicos, uma percentagem significativa das vagas dos concursos de recrutamento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) fica deserta, não por falta de candidatos mas, essencialmente, porque a nova geração de profissionais é mais exigente e, lidimamente, quer garantir a compatibilidade entre a vida profissional e familiar recusando-se a viver dentro do hospital com a obrigação de, com frequência, garantir a atividade dos serviços em presença física por períodos superiores aos limites definidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1919) (International Labour Office – Geneva, 2019).

Em geral, os médicos do SNS trabalham 24 horas consecutivas no serviço de urgência, levando regularmente à exaustão e sendo abundantes os efeitos negativos do excesso de horas de trabalho na saúde dos profissionais, na vida familiar, na qualidade do atendimento e na segurança (Dominique & Karlsson, 2019). Por outro lado, a carga horária semanal pode esgotar-se em dois dias por semana, incentivando processos de acumulação de funções no setor público e privado. Estas práticas originam pesadas ineficiências no SNS:

– Blocos operatórios subutilizados;

– Serviços que só funcionam na parte da manhã;

– Rotura dos serviços de urgência com encerramento desordenado;

– Défice em acessibilidade e universalidade da cobertura;

– Falta de coordenação entre os prestadores;

– Insatisfação dos utentes;

– Insatisfação dos profissionais;

– Crescimento desequilibrado da despesa.

Neste contexto, sempre que há eleições legislativas alimentamos a esperança de que, desta vez, o Governo indigitado vai executar um programa capaz de melhorar o acesso e “assegurar o direito à proteção da saúde” previsto no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Para o efeito, terá que estabelecer prioridades, objetivos e ações, e indicar os resultados esperados. Mas, que prioridades?

Discussão

O livro “Determinantes do Trabalho Médico” (Bernardino, 2022) aponta algumas perspetivas sobre a questão suscitada. Contém as conclusões e contributos de 62 participantes selecionados entre médicos, dirigentes, gestores, especialistas e outros atores do sistema de saúde português.

Qualquer que seja o programa de saúde haverá que revisitar o processo de reforma do SNS, em curso, com integração dos cuidados primários e hospitalares num modelo de organização em unidades locais de saúde. Além disso, o sistema de saúde integra, não só o SNS, mas também o setor privado e social. Nesse sentido, espera-se uma clarificação de matérias cruciais que, incompreensivelmente, têm sido reiteradamente adiadas.

Cobertura assistencial do país

É exemplo a necessidade de colocação de profissionais e unidades de saúde nas regiões onde se considera necessário garantir resposta à procura de cuidados. É conhecida a assimetria na distribuição geográfica de médicos, com uma concentração nas zonas do Porto, Coimbra e Lisboa e défice nas restantes regiões do país. Constatamos que nos setores da “educação” e da “justiça”, os professores e os juízes são distribuídos pelas diferentes regiões para assegurar o acesso. Porém, no setor da “saúde” os concursos para colocação de médicos ficam desertos em regiões deficitárias. Percebemos que além da ineficácia das políticas de incentivos criadas para atrair médicos para estas regiões, não existem mecanismos eficazes para assegurar o acesso como acontece na “educação” e na “justiça”.

A nível europeu são conhecidas várias iniciativas do Parlamento, do Conselho e da Comissão Europeia, sobre estratégias em matéria de recursos humanos (EUR-Lex, 2011), o reforço da capacidade de planeamento e previsão em matéria de profissionais de saúde (European Union, 2014), bem como a disponibilidade de recursos humanos com as competências e a flexibilidade adequadas (European Commission, 2019).

Em consonância com as diretrizes europeias, Portugal criou o Inventário Nacional dos Profissionais de Saúde – Lei n.º 104/2015, de 24 de agosto – com o objetivo de contribuir para um melhor planeamento e coordenação das políticas de recursos humanos na saúde. Este Inventário visava constituir-se como instrumento de uma política de utilização mais racional e eficiente dos profissionais, para assegurar a cobertura do país. Todavia, até à presente data não se conhece qualquer utilidade deste instrumento, mantendo-se uma distribuição irracional dos recursos humanos e unidades de saúde.

Força de trabalho organizada

Correlacionado com o ponto anterior, também resultante de diretrizes europeias, é a necessidade de garantir uma força de trabalho com “capacidade suficiente, competências certas e flexibilidade adequada para responder à evolução constante da procura de cuidados de saúde” (European Commission, 2014) (European Commission & Directorate-General for Health and Food Safety, 2017).

Os médicos e outros profissionais de saúde como enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, nutricionistas, técnicos de saúde, auxiliares, etc., são a força de trabalho fundamental no setor. Todavia, sem prejuízo do trabalho imprescindível destes profissionais, o acesso aos cuidados de saúde requer um número suficiente de médicos, com repartição de generalistas e especialistas e uma distribuição geográfica adequada.

Por outro lado, para garantir o funcionamento permanente dos hospitais, a generalidade dos profissionais tem modalidades de horário de trabalho flexíveis e compatíveis. Não obstante, o regime de trabalho médico é exceção.

O quadro regulador do trabalho médico em Portugal decorre de vários diplomas legais e de acordos coletivos de trabalho que, no seu conjunto, geram dificuldades de interpretação e um modelo complexo de implementação. Além disso, em função da idade do trabalhador, está prevista a dispensa de trabalho no serviço de urgência e, em alguns casos, a redução do número de horas de trabalho semanal. De um modo geral, os horários de trabalho são rigidamente organizados de segunda a sexta-feira, entre as 8 e as 20 horas. O restante período da semana, 108 (64,3%) das 168 horas, apenas pode ser garantido com “até 18 horas semanais” de cada médico. Significa que, em grande parte do período de funcionamento dos serviços de saúde, o apoio médico às atividades de internamento, unidades de cuidados intensivos e unidades de cuidados intermédios, urgência externa e interna, só pode ser garantido com horas extraordinárias.

Assim, a incompatibilidade do regime de trabalho médico com o funcionamento dos serviços de saúde é evidente. Decorrem do regime de trabalho médico limitações na distribuição da carga horária semanal, no recurso ao trabalho por turnos e na utilização do regime de prevenção. Estas limitações geram uma concentração excessiva de médicos no período da manhã e impede a distribuição do tempo de trabalho pelos restantes períodos do dia e ao fim de semana ou feriados.

Segundo Gastão Campos, “os médicos, valendo-se da sua força política e corporativa foram capazes de se organizar para defender a sua autonomia e impor aos gestores a sua forma de organizar o trabalho” (Campos, 2010). Talvez, por esse motivo, a organização da atividade médica é hoje incompatível com o período de funcionamento dos serviços e com o trabalho em equipa.

De referir que o “trabalho de equipa” é atualmente considerado fundamental para assegurar a intervenção na doença crónica, na multimorbilidade, bem como na constituição e no desenvolvimento de competências para o trabalho multidisciplinar (Jorge, 2019), condição indispensável para garantir a qualidade e a continuidade dos cuidados de saúde que são progressivamente mais exigentes (Vauchel, 2014).

Desta forma, evidencia-se a incompatibilidade do regime de trabalho médico com a ambicionada força de trabalho organizada – com todos os profissionais de saúde – de modo a satisfazer as necessidades assistenciais da população.

Foco no sistema de saúde e no primado do doente

O terceiro pilar fundamental é a mudança de paradigma no sentido de colocar o doente no centro do sistema. Segundo Adrian Davis, “as organizações não existem para se servir dos seus clientes, mas antes para os servir” (Davies, 2006). Este princípio irrefutável explica a prevalência dos interesses dos doentes sobre os interesses corporativos, conforme alínea a) do número 3 do artigo 64.º da CRP.

Deste modo, espera-se uma política de saúde audaciosa para alterar o paradigma que privilegia os interesses dos profissionais. O predomínio dos interesses dos profissionais sobre os interesses dos doentes acontece diariamente, sendo mais facilmente audíveis as reivindicações e mais frequentemente satisfeitos os interesses dos trabalhadores do que dos doentes. A começar pelo próprio direito à greve. O doente não pode fazer greve para ser atendido dentro dos tempos de resposta legalmente garantidos. Mas o profissional de saúde pode recorrer à greve, impondo ao doente o adiamento do seu tratamento. Não negamos a legitimidade do direito à greve, mas reconhecemos o conflito latente com o direito à saúde.

Acresce que há consenso, na União Europeia e em Portugal, quanto aos princípios organizadores do sistema de saúde e aos seus três desafios – acessibilidade, eficácia e resiliência (European Commission, 2014)(European Commission & Directorate-General for Health and Food Safety, 2017). Contudo, são muitas as divergências quanto ao modo de os prosseguir. Segundo Contandriopoulos, essa falta de consenso decorre da complexidade do sistema em que intervêm “quatro grupos de atores com lógicas e valores diferentes: profissionais, administradores, mundo mercantil e mundo político” (Contandriopoulos, 2016). Estas quatro lógicas coexistem, não são redutíveis umas às outras e não se pode esperar que as espectativas de uns sejam compatíveis com as expectativas dos outros.

Como reforço desta conceção e em cumprimento da “gestão descentralizada e participada” prevista no número 4 do artigo 64.º da CRP, o sistema de saúde português tem o dever de constituir uma entidade com poderes de direção e supervisão, representativa dos quatro principais grupos de atores – os profissionais, os gestores, os decisores políticos e os doentes. A metodologia para designar o representante dos interesses do doente pode constituir um desafio, mas possível de alcançar. Esta nova entidade pode resultar da reestruturação da atual Administração Central do Sistema de Saúde e seria responsável por organizar os recursos face às necessidades assistenciais, podendo dispor de competências como:

– Estudar e emitir orientações sobre organização da atividade assistencial no sistema de saúde e sobre a estrutura das unidades de saúde do setor público, privado e social, considerando contextos e recursos da realidade nacional, regional e local;

– Monitorizar a efetividade e qualidade da prestação de cuidados de saúde.

Os objetivos desta entidade seriam especialmente orientados para a promoção da acessibilidade, eficácia e resiliência do sistema de saúde, bem como a sua monitorização.

Conclusões

Admitimos que, por imperativo constitucional, incumbe ao Estado garantir “o acesso de todos os cidadãos aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação”, “uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde”, bem como “assegurar adequados padrões de eficiência e de qualidade nas instituições de saúde públicas e privadas” (número 3 do artigo 64.º CRP).

Em consequência, no âmbito do Estado de Direito e no quadro jurídico vigente, espera-se de qualquer Governo um programa para o sistema de saúde suportado em três pilares:

1. Cobertura assistencial do país:

– Garantir “uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde” [alínea b), n.º 3 do artigo 64.º da CRP];

– Promover “a igualdade e a não discriminação no acesso a cuidados de saúde de qualidade em tempo útil” (n.º 2, Base 4 da LBS).

2. Força de trabalho capaz, competente e flexível:

– Prover “uma força de trabalho planeada e organizada de modo a satisfazer as necessidades assistenciais da população, em termos de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade” (n.º 5, Base 22 da LBS);

– Promover uma política de recursos humanos que garanta “o trabalho em equipa, multidisciplinar e de complementaridade entre os diferentes profissionais de saúde” (alínea c) do n.º 2 da Base 29 da LBS).

3. Foco no sistema de saúde e no primado do doente:

– Para execução da “gestão descentralizada e participada” (número 4 do artigo 64.º da CRP), os interesses dos doentes têm que estar representados na direção/supervisão do sistema de saúde;

– Adotar “instrumentos e técnicas de planeamento, gestão e avaliação que garantam que é retirado o maior proveito, socialmente útil, dos recursos públicos” (n.º 4, Base 22 da LBS).

Pelo exposto, é legítimo esperar do novo Governo uma política de saúde que garanta a melhor articulação do setor público, privado e social, bem como um programa com definição clara dos objetivos e de metas para o sistema de saúde. Estas metas devem ser específicas, viáveis, mensuráveis e localizadas no tempo e espaço, por forma a serem avaliadas nas eleições seguintes em observância das regras da democracia.

Referências – Bernardino, M. (2022). Determinantes do trabalho médico: Estudo de avaliação em saúde. Almedina. – Campos, G. W. de S. (2010). Cogestão e neoartesanato: Elementos conceituais para repensar o trabalho em saúde combinando responsabilidade e autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, 15(5), 7. – Contandriopoulos, A.-P. (2016). Avaliar a Avaliação. Em: Avaliação: Conceitos e métodos. Em Avaliação: Conceitos e métodos (p. 263 a 272). Editora Fiocruz. – Davies, A. (2006). Anexo E – Governo das Sociedades em Portugal. Em Corporate Governance—Boas Práticas de Governo das Sociedades (p. 233 a 263). Monitor – Projetos e Edições, Lda. – Dominique, A., & Karlsson, M. (2019). Overtime work: A review of literature and initial empirical analysis. EUR-Lex. (2011, julho 8). Conclusões do Conselho Europeu sobre Rumo a sistemas de saúde modernos, reativos e sustentáveis (2011/C 202/04).  European Commission. (2014). Comunicação sobre Sistemas de Saúde eficazes, acessíveis e resilientes COM (2014) 215 final. – European Commission. (2019). Apresentação | Saúde pública | Profissionais da Saúde | Site.  European Commission & Directorate-General for Health and Food Safety. (2017). State of health in the EU: Companion report 2017. European Union. (2014). Regulamento (UE) n.o 282/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2014, que estabelece um terceiro programa de ação da União no domínio da saúde (2014-2020) e revoga a Decisão n.o 1350/2007 / CE. oj – International Labour Office – Geneva. (2019). Guide to developing balanced working time arrangements. – Jorge, A. (2019). A Saúde e o Estado: O SNS aos 40 anos. Em Saúde, um direito humano—Relatório Primavera 2019 (pp. 28–32). Observatório Português dos Sistemas de Saúde. OIT. (1919). Convenção n.o 1, sobre Duração do Trabalho (Indústria). Vauchel, V. (2014). Gérer et organiser différemment le temps de travail médical. L’exemple des anesthésistes à l’Hôpital Universitaire Necker-Enfents malades. École des Hautes Études en Santé Publique.

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