1 Fev, 2023

“O SNS está em remodelação, é essencial criar respostas específicas para os idosos”

A coordenadora do Núcleo de Estudos de Geriatria (NEGERMI) da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), Sofia Duque, faz uma antevisão do 12.º Curso de Introdução à Geriatria. A formação irá decorrer online nos dias 3, 6 e 8 de março e presencialmente no dia 11 de março, em Lisboa. Em entrevista fala sobre o curso e alerta para a necessidade de formação em Geriatria.

Há mais de 13 anos que organizam o Curso de Introdução à Geriatria. Face a outros anos, que expectativas tem para este ano?

Todas as edições têm tido boa participação e notamos, de facto, um aumento no número de interessados, nomeadamente desde que introduzimos uma componente teórico-prática, que marca a diferença. Os temas são explorados com base em casos clínicos reais, dotando os formandos de ferramentas úteis no seu dia-a-dia para poderem identificar e resolver problemas clínicos típicos dos doentes geriátricos. Como a formação em Geriatria ainda não faz parte da formação pré- e pós-graduada de forma generalizada, este curso é de facto uma mais-valia ou não fôssemos todos formadores com competência em Geriatria e experiência clínica na área.

 

Uma dessas ferramentas é a avaliação geriátrica global (AGG)?

A primeira ferramenta eu diria que é a sensibilidade para valorizar e diagnosticar alguns problemas clínicos que põem em causa a qualidade de vida dos idosos. Muitos destes problemas são frequentemente ignorados na prática clínica tradicional. Naturalmente, a ferramenta base em Geriatria é a AGG que permite conhecer com mais precisão o estado do idoso e os seus problemas (médicos, mas não só!), possibilitando uma resposta mais completa e adequada dos profissionais e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida para a pessoa.

“Os médicos sentem cada vez mais a necessidade (e obrigação ética!) de dar uma resposta mais especializada aos idosos”

Essa procura pelo Curso deve-se ao facto de, face ao envelhecimento da população, os profissionais de saúde terem de lidar cada vez mais com as particularidades dos mais velhos?

Sim, sem dúvida! Os médicos sentem cada vez mais a necessidade (e obrigação ética!) de dar uma resposta mais especializada aos idosos que, de facto, têm determinadas especificidades por causa da idade. Nas sessões mais práticas de casos clínicos vamos focar-nos precisamente nos problemas que mais afetam estes doentes: alterações cognitivas/demência, défices sensoriais, depressão, instabilidade e quedas, imobilidade, dor, úlceras por pressão, disfagia, incontinência e retenção urinária, iatrogenia, alimentação no idoso e desnutrição, sarcopenia, fragilidade, alterações do sono, delirium, reabilitação, vacinação, maus-tratos e problemas sociais e diretiva antecipada da vontade.

 

Quais são as síndromes geriátricas que mais preocupam?

Todas são importantes, vai depender do contexto clínico, da pessoa em si… A síndrome de fragilidade talvez seja a mais importante, porque resulta de todas as outras e o doente frágil é o principal alvo da Geriatria pela maior necessidade de intervenções especializadas; mesmo assim, a abordagem clínica da fragilidade implica ter em conta as restantes síndromes geriátricas. Aliás, este é um ponto essencial na Geriatria: não podemos olhar somente para um determinado problema de saúde, antes temos de olhar para o todo. Todas as doenças e condições interagem entre si e as intervenções terapêuticas também. Isto obriga-nos a olhar a pessoa idosa de uma forma global, como um sistema complexo, o que passa inevitavelmente pela personalização e individualização de cuidados.

 

Relativamente à AGG, face a todos os constrangimentos que se sentem no Serviço Nacional de Saúde (SNS), é possível aplicar na prática clínica?

Sim, é possível. Há várias formas de aplicar esta ferramenta. O importante é existir um gestor do doente – habitualmente o médico geriatra –  que possa identificar que se trata de um doente geriátrico, que precisa de uma avaliação multi e interdisciplinar completa. A avaliação poderá não ser possível, na íntegra, num só momento, mas pode acontecerá posteriormente, passo-a-passo, ativando e mobilizando os recursos e profissionais que vão sendo necessários. E neste caso é fundamental que o geriatra consiga identificar as prioridades para se hierarquizar os problemas de saúde. A designação Avaliação Geriátrica Global pode ser errónea…. principalmente numa comunidade científica em que o conhecimento sobre Geriatria é insuficiente…De facto na AGG, além de fazermos um diagnóstico preciso e completo de todos os problemas da pessoa idosa – desde os clínicos aos psicológicos e sociais -, o principal componente  é mesmo a intervenção e o seguimento do doente ao longo do tempo. E pôr em marcha muitas das intervenções exige conhecer a fisiopatologia das síndromes geriátricas, como a incontinência urinária, as quedas, o défice cognitivo, isto só para dar alguns exemplos…. E isto é que é a Geriatria.

“Quando se tomam decisões, e às vezes, emergentes, é ainda mais relevante saber identificar por exemplo a síndrome de fragilidade”

E num contexto de urgência, também se pode aplicar a AGG?

Sim, mas para tal é preciso estar sensibilizado para  as síndromes geriátricas, dai a relevância destas ações formativas. Quando se tomam decisões, e às vezes, emergentes, é ainda mais relevante saber identificar por exemplo a síndrome de fragilidade, a deterioração cognitiva e estádios de reserva fisiológica muito reduzida. Exemplificando: perante uma paragem cardiorrespiratória temos que decidir rapidamente , e não com base na idade mas na reserva fisiológica e funcional, se optamos por uma intervenção mais invasiva. Ter conhecimentos  de Geriatria no Serviço de Urgência faz toda a diferença para que os médicos não discriminem os doentes com base na idade cronológica. Mesmo na Saúde é preciso combater o idadismo.

 

Há mais de 15 anos que está ligada à Geriatria. À época, havia muito pouca formação nesta área…

Sim, é verdade. Falava-se muito pouco de cuidados geriátricos, mas percebi que era uma área com um grande potencial e à qual se deveria dar maior atenção. Entretanto, foi criado o NEGERMI e foi-se fazendo algum caminho até se chegar à aprovação da competência por parte da Ordem dos Médicos e à criação de alguns projetos a nível nacional.

 

Que avaliação faz da Geriatria em Portugal?

Cinco anos antes da pandemia conseguiu-se evoluir, também graças, de alguma forma, à criação da competência e, sobretudo, a formações na área. Houve quem conseguisse inclusive fazer estágios clínicos em instituições noutros países, onde a Geriatria é uma especialidade. Espanha é um desses países, onde há mais de 30 anos se criaram serviços de Geriatria de referência com múltiplas valências, do internamento ao ambulatório e para doentes idosos em diferentes etapas da trajetória de vida. Isso também contribuiu para que se desenvolvessem alguns projetos nacionais, como consultas de Geriatria e unidades de Ortogeriatria. Mas, neste momento, sente-se alguma frustração, porque esperavam-se mais respostas especializadas para idosos, quer nos hospitais como nos cuidados de saúde primários, com a criação de unidades de internamento especializadas e consultas específicas. Também nos Cuidados Continuados, a formação em Geriatria fica muito aquém do desejável considerando que grande parte dos doentes aí seguidos são idosos com multimorbilidade e fragilidade. Não posso deixar de dizer que os médicos a trabalhar em Cuidados Continuados e em Lares / ERPI deviam ter todos formação e competência em Geriatria. E para uma formação sólida, têm de existir serviços de Geriatria nos hospitais. É assim que acontece nos países mais desenvolvidos da Europa….

“É urgente criar Unidades de Geriatria em meio hospitalar, para a abordagem dos doentes idosos mais complexos por equipas multidisciplinares vocacionadas”

E por que razão não se desenvolvem mais respostas em Geriatria?

Por dois grandes motivos. Primeiro, a Tutela não exige que os médicos que maioritariamente assistem idosos, em particular os mais complexos e frágeis, tenham de facto formação estruturada e consistente em Geriatria. As crianças que têm doenças complexas são seguidas por médicos especializados, e com um currículo formativo vocacionado para essa população – são os pediatras. Mas tal não se passa com os idosos. Porquê? Os idosos têm menos direito a cuidados de saúde adequados que as crianças?! Assim, penso que a formação em Geriatria devia ser obrigatória para determinados médicos e outros profissionais de saúde que se dedicam maioritariamente à assistência de pessoas idosas. Segundo, não se considera, do ponto de vista estrutural, que seja relevante ter no SNS unidades de Geriatria ou de Ortogeriatria, consultas, etc. Todos os projetos que surgem a este nível não são considerados como um serviço básico que o SNS deve oferecer. Os idosos portugueses  não têm, a este nível, os mesmos direitos que os seus congéneres europeus. Esta realidade deveria preocupar-nos…

 

O que se pode fazer para que a Tutela possa perceber a importância da Geriatria?

Sensibilizar sobre as necessidades clínicas específicas dos doentes idosos, as quais requerem profissionais e respostas clínicas especializadas … O NEGERMI está empenhado nesta tarefa – temos  o exemplo dos serviços de saúde dos outros países da Europa, temos a iniciativa da OMS – a Década do Envelhecimento Saudável 2021–2030, e Portugal participa no projeto PROGRAMMING – PROmoting GeRiAtric Medicine in countries where it is still eMergING (COST Action CA21122). Estando atualmente o SNS numa fase de remodelação, é essencial que se aproveite esta oportunidade para inovar e criar respostas específicas para os idosos, promovendo-se ativamente a formação (obrigatória) dos profissionais. É urgente criar Unidades de Geriatria em meio hospitalar, para a abordagem dos doentes idosos mais complexos por equipas multidisciplinares vocacionadas; e estas unidades serão o local de excelência para a formação de médicos e outros profissionais de saúde especializados em Geriatria.

 

Além do Curso, que outras iniciativas estão a desenvolver no NEGERMI?

Temos organizado as Open Sessions online, e que ficam disponíveis em diferido, que são mensais e que vêm colmatar a ausência de sessões clínicas sobre Geriatria nos serviços. É fundamental debater casos clínicos, artigos, entre outros. Desde julho de 2022 que temos esta iniciativa. Planeamos ainda retomar os podcasts “NEGERMI Talks”. No ano passado tivemos um piloto sobre “Unidades de Ortogeriatria”, mas queremos mais temas. E, nos dias 26 e 27 de outubro, vamos ter a reunião anual, que este ano vai ser na Figueira da Foz.

SO

Notícia relacionada

Hospitais devem criar unidades de internamento de geriatria, defende Gorjão Clara

Print Friendly, PDF & Email
ler mais
Print Friendly, PDF & Email
ler mais