“O médico de família numa unidade de saúde privada é cada vez mais a primeira e única opção”

João Sequeira Carlos é o diretor do Serviço de Medicina Geral e Familiar do Hospital Luz Lisboa. Em entrevista ao SaúdeOnline comenta o papel da MGF no setor privado, um dos temas que será debatido no 40.º Encontro Nacional de MGF, da Associação Portuguesa de MGF, que vai decorrer de 29 de março a 1 de abril, em Vilamoura.

Qual é o papel da MGF no setor privado?

É um papel fundamental no sistema de saúde. Os nossos governantes e todos os agentes do setor da saúde defendem que os cuidados têm de ir ao encontro das necessidades da população e que o cidadão deve estar no centro do sistema. Neste momento, para que isso aconteça é necessário que não nos foquemos somente no Serviço Nacional de Saúde (SNS) mas sim no sistema de saúde (SS). Obviamente, o SNS toma a dianteira e abrange o maior número de utentes. No entanto, não podemos esquecer que cerca de 3 milhões de portugueses têm seguros, planos ou subsistemas de saúde. Logo, mais do que nunca a resposta no setor privado tem de estar estruturada do mesmo modo que no setor público.

Se no SNS, a MGF lidera o processo de coordenação de cuidados e é o primeiro contacto com o cidadão na prestação de cuidados de saúde, o mesmo deve acontecer no setor privado. Felizmente, os grupos privados de saúde tiveram, desde cedo, essa visão e perceberam o importante papel da MGF. Assim surgiram departamentos de MGF em várias unidades e, no caso específico do Hospital da Luz Lisboa, foi criado um Serviço de MGF, integrado no Departamento de Medicina. O nosso projeto foi pioneiro nesse sentido. Hoje podemos mesmo dizer que temos um centro de saúde dentro de um hospital.

“Um centro de saúde dentro do hospital é de facto algo inédito, mormente no setor público”

Com os problemas que existem atualmente no SNS, a MGF no setor privado acaba por ser uma alternativa…

Estou há 16 anos no Hospital da Luz e o que vejo é que a MGF no setor privado já não é vista como uma alternativa, mas como uma opção por muitos cidadãos. Do ponto de vista histórico, esta mudança é significativa, passando-se de um papel complementar para um papel primordial. No pressuposto da liberdade de escolha, ter médico de família numa unidade de saúde privada é cada vez mais a primeira e única opção. Contudo, não se pode ignorar que ainda há muitos doentes que recorrem ao setor privado por falta de resposta do SNS.

Um dos benefícios será também a proximidade e a interligação com as especialidades hospitalares?

Sim, sem dúvida, mas nesse caso depende do modelo de cada grupo hospitalar. Um centro de saúde dentro do hospital é de facto algo inédito, mormente no setor público. Mas há países em que mesmo neste contexto se apostou em criar departamentos de MGF na estrutura interna de hospitais. Tive oportunidade de o testemunhar por exemplo em Singapura, onde o principal hospital público tem um departamento de cuidados de saúde primários. E esta verdadeira integração ocorre não só no plano assistencial clínico, mas também na vertente da formação e investigação. Aliás, como acontece no Hospital da Luz, onde a interação entre pares e com outras especialidades é já natural, com grandes benefícios para o doente. Os cuidados são partilhados em equipas multidisciplinares e a referenciação de doentes é bidirecional. A experiência de outras especialidades referenciarem doentes para a MGF é muito positiva.

“A MGF no setor privado tem também um importante impacto na gestão de recursos – evita-se a duplicação de exames complementares de diagnóstico e a redundância de procedimentos clínicos”

Mas é bem aceite interpares?

Sim e cada vez mais. No Hospital da Luz, os colegas de outras especialidades saúdam vivamente o facto de poderem ter uma resposta de MGF a nível interno. A coordenação de cuidados entre a nossa especialidade e as hospitalares in loco permite evitar autorreferenciações e otimizar a gestão integrada da doença crónica. Anteriormente, muitas consultas de especialidades hospitalares estavam preenchidas com doentes que deviam ser acompanhados nos cuidados de saúde primários. A nossa realidade é bem diferente. A MGF no setor privado tem também um importante impacto na gestão de recursos – evita-se a duplicação de exames complementares de diagnóstico e a redundância de procedimentos clínicos. A MGF no setor privado, em última análise, está a contribuir para que as especialidades hospitalares possam finalmente dedicar-se ao seu core de cuidados, podendo assim evoluir em termos de conhecimento e de técnicas. Do mesmo modo pode a nossa especialidade expandir a sua influência.

Mas os especialistas de MGF também podem perder algumas tipologias de cuidados que têm no setor público, como a Saúde da Mulher?

Sim, é verdade. Existem algumas perdas, é natural que assim seja, porque nas unidades privadas tem-se acesso mais facilmente uma resposta especializada na área da Saúde da Mulher e também na Pediatria. Mas como referi anteriormente, assistimos ao processo de referenciação bidirecional, e por exemplo na Pediatria muitos jovens ainda sem terem completado 18 anos fazem a transição para a MGF. Sentem-se mais confortáveis na MGF, onde os pais já são seguidos. Fica assim sublinhado o foco na saúde familiar também no setor privado.

É a liberdade de escolha…

Sim, é muito interessante, pois é no setor privado que temos a verdadeira noção da liberdade de escolha. Ir ao encontro das necessidades da população e colocar de facto o cidadão no centro dos cuidados é fundamental. Deve-se ter cada vez mais uma perspetiva de sistema de saúde e não somente de SNS, que está tão preso e até refém de preconceitos ideológicos que têm impedido uma expansão em pleno de um sistema de saúde inovador e com futuro em Portugal.

SO

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