O estranho caso do SNS
Rui Cernadas, especialista em Medicina Geral e Familiar, escreve sobre a situação atual do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

O estranho caso do SNS

O País foi de férias em Agosto, mas os Portugueses depois de receberem o Papa Francisco voltaram aos assuntos mais terrenos e perceberam os sucessivos fechos e interrupções de serviços de urgência, de norte a sul, ou as greves dos médicos e as queixas, também destes, do estado a que o SNS chegou!

E recordei-me do filme de David Fincher – “O Estranho Caso de Benjamin Button”, baseado numa história de 1922, escrita pelo grande escritor norte-americano Scott Fitzgerald.

Benjamin Button, interpretado por Brad Pitt é um homem que nasce idoso e rejuvenesce à medida que o tempo passa. O nosso SNS é um filme diferente e segue 100 anos volvidos sobre o texto de Fitzgerald um percurso inverso mas acelerado de degradação, descrença e fatalidades.

Ainda que em um outro sentido o SNS pareça querer renascer velho para quiçá o tempo o tornar jovem… Refiro-me obviamente a dois factos concretos e conhecidos. O primeiro, o do anúncio de discussão e preparação de planos de negócio em futuras e mais ULS (Unidades Locais de Saúde), um primeiro conjunto anunciado pela Direcção Executiva do SNS como o modelo para a salvação do SNS no País.

O segundo, o da afirmação que até final de 2023 o SNS poderia passar a contar com cerca de 30 ULS capazes de assegurar cuidados a cerca de 50% ou mais da nossa população. E mais do que esses tantos muitos mais em 2024…

Confesso a minha profunda ignorância sobre a estratégia atirada para o ar, cujos contornos legais e regulamentares desconheço, de resto em linha com a minha estupefacção por tudo acontecer e suceder sem rede primária, sem alterações sérias ou inovadoras no modelo de financiamento das ULS, sem se discutir o papel, a responsabilidade e os erros na situação actual do SNS por parte da ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde), sem explicações sobre as datas de funeral das ARS (Administrações Regionais de Saúde), sem se alvitrar o futuro da DGS e da Saúde Pública em Portugal, sem se adivinhar como as Comissões Coordenadoras Regionais sairão do emaranhado de trapalhada que lhes está a ser atirada para as mãos, sem se perceber como as sequelas da Reforma dos Cuidados Primários evoluirão, embora certamente com charutos cubanos e outras “tropicalices” prometidas, esperando que quem de direito se decida a apresentar formalmente e responsabilizar-se por um Planeamento global, coerente e integral para o SNS, mesmo que como já se adivinha não ter havido prévias discussões com partes interessadas na solução!

As medidas avulsas ou a replicação de soluções regionais poderão ser um método paliativo mas não centra o foco no que interessa a prazo. E nem vou invocar o que ainda parece óbvio.

O modelo ULS pode ser algo como uma pequena ARS. E isso vai ser bom ou ser mau? Com um sistema de financiamento que será sempre de base capitacional e obedecendo a critérios e contingências demográficas? Como será nas regiões mais desertificadas?

As ULS em Portugal vão celebrar um quarto de século em 2024. Para inovação no SNS vem um pouco “requentado”, não? As ULS enquanto modelos de negócio foram todas validadas e atingiram nota elevada? E no plano dos resultados, da formação e da investigação clínica? E isto é útil ou disparatado para captar e fixar jovens profissionais e atrair competências?

E foram pensadas e medidas as consequências de assumir o que foi dito publicamente quanto à “articulação com as autarquias e o papel do poder local que vai ser reforçado com esta estratégia”?

Mas e então o envolvimento na Saúde e no SNS que se reserva e passou às Comissões Coordenadoras Regionais?

Brad Pitt interpretou o papel de Button mas não seria artista para ser personagem no SNS.

Nem a andar para a frente nem para trás. Mas, provavelmente, o filme do SNS vai acabar a preto e branco, num retorno ao cinema mudo, aí um dia destes num cinema bem próximo de si.

 

O autor escreve de acordo com o A.A.O.

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