O drama das urgências hospitalares

Pertenço a uma geração que há 50 anos entrou para uma das três Faculdades de Medicina essencialmente por vocação e não obrigatoriamente por ter média de 19. Aliás conheci vários casos de quem entrou com médias de 12 e se tornaram médicos excecionais.

Vocação significava aceitar os sacrifícios necessários para aprender com os conceitos da medicina da época, e grandes médicos com experiência clínica, e depois aplicar os mesmos na ajuda aos concidadãos nos seus problemas de saúde. Os Professores davam as bases do conhecimento e treinavam-nos no rigoroso exame clínico sem os atuais meios auxiliares de diagnóstico. Aliás havia um axioma em que se houvesse divergência entre a clínica e os exames prevalecia a clínica.

Assisti nestes 50 anos à evolução da medicina com uma velocidade e qualidade astronómicas, especialmente na minha especialidade de cirurgião geral. No entanto, algo continua quase igual e com os mesmos defeitos de há 50 anos, as Urgências Hospitalares. Queria-se sempre que as equipes tivessem o maior número de especialidades disponíveis com escalas gigantescas, o que se veio a comprovar ser impossível de aguentar.

Nos últimos 30 anos passou a haver duas visões diferentes da maneira de gerir as mesmas, a dos vários profissionais assistenciais e as administrações hospitalares. Para estas contava essencialmente que não houvesse reclamações fosse pela falta de profissionais, fosse pela queixa mais comum, o tempo de espera. Então foram-se importando médicos, independentemente das suas habilitações e capacidades linguísticas. O que lhes importava era que o “cliente” fosse visto por alguém em hábito hospitalar, que lhe passasse exames e, por fim, desse alta rapidamente com uma receita.

Para os profissionais, e apesar das suas sucessivas reclamações, as urgências tinham de funcionar como a porta de entrada do sistema hospitalar. E para isso se fosse necessário sacrificavam-se os serviços e os seus profissionais.

Em tempos, a Ordem dos Médicos quis abrir a especialidade de Medicina de Urgência para preparar médicos especificamente para essa função complementada com o apoio das especialidades. Não conseguiu essencialmente por obstáculos do Ministério da Saúde e também, sejamos honestos, com a conivência de alguns médicos que receavam perder o seu conceito de poder ou privilégio.

E depois começaram a aparecer os grandes grupos da medicina privada! Estes rapidamente se aperceberam das falhas mais que avisadas e previsíveis do SNS, para tirar proveito das mesmas e instalar o seu negócio lucrativo e em crescendo.

No SNS não se faziam contas, no privado sim. Era um vaso com cada vez mais buracos, onde por mais dinheiro que se lhe atribuísse era sempre escasso. As dívidas foram crescendo e as várias abordagens nunca tiveram resultados práticos. Houve experiências interessantes como as PPP, umas com resultados positivos, outras nem tanto, mas o poder político, especialmente de esquerda, acabou com elas.

Mas voltemos ao tema das urgências. Com a evolução dos acontecimentos e a concorrência da medicina privada, os grupos socioprofissionais foram aumentando as suas legítimas reclamações, o que descambou no aumento de greves e na recusa de os profissionais continuarem com o seu trabalho escravo para manter as ditas. Não foi sequer preciso termos passado pela epidemia da covid para que tal visse à superfície, andámos muito tempo governados por quem se recusava a ver que o rei vai nu.

As urgências deveriam funcionar para atender urgências e não como principal porta de entrada nos hospitais ou para suprir as insuficiências dos cuidados primários. Ninguém deveria ir à urgência sem ser referenciado para tal ou numa emergência. Para que tal acontecesse tem de haver uma triagem prévia, SNS24 ou outra, cuidados primários eficientes e exames auxiliares em tempo útil e de qualidade.

É muito provável que alguns serviços hospitalares pudessem ser mais rentáveis se respondessem às necessidades dos cuidados primários. Atualmente, com algumas especialidades acontece precisamente o contrário e os exames são pedidos a entidades externas por falta de médicos ou técnicos.

Defendo há muitos anos que o serviço de urgência deve ser autónomo como qualquer outro, como uma especialidade própria, com formação adequada para responder às suas necessidades e suplementar-se com o auxílio de outras como acontece com os outros serviços.

Condições essenciais é ter formação médica especializada e, muito importante, falar e entender a língua portuguesa. Não tenho nada contra os médicos estrangeiros, mas devem ter o mesmo grau de exigência que os portugueses e conseguir entender a fala de quem a eles recorre. Um serviço de medicina ou cirurgia não precisa de ter uma imagiologia ou patologia clínica dentro serviço, mas articula-se com esses serviços.

Por outro lado, tem de haver como em todos os serviços uma hierarquia de responsabilidades, não só para apoiar os menos experientes, mas também para contribuir para a sua formação. Lembro-me do Banco de S. José de há 50 anos onde nós, os mais novos, não éramos autónomos e tínhamos sempre alguém mais velho que nos escrutinava , apoiava e, se necessário, corrigia.

A situação que se vive atualmente resulta de falta de decisões importantes, seja na organização, recursos em pessoal ou equipamentos e também nas mentalidades. Para haver mudanças há regras básicas em que se identifica os problemas, se explica as razões da mudança e os benefícios pretendidos. Se isto não se passar ou for compreendido nunca se conseguirá a participação das pessoas envolvidas. Leva tempo, mas quanto mais tarde pior e mais difícil de corrigir os vícios adquiridos pelo status quo.

E assim termino mais esta reflexão.

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