4 Out, 2022

“Há um défice de anestesiologistas, as necessidades são cada vez maiores”

Em entrevista, a presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia eleita há poucos meses, alerta para o défice de especialistas no SNS, agravado pela multiplicação de áreas onde estes profissionais atuam e pela saída de anestesiologistas para o setor privado. Fátima Lima pede melhorias na organização dos hospitais de modo a fixar anestesiologistas e perspetiva que a Anestesiologia se venha a tornar na especialidade mais importante a nível hospitalar.

Como é que avalia o estado atual da Anestesiologia portuguesa?

A Anestesiologia é uma especialidade transversal, assume um papel preponderante na medicina hospitalar, é um motor da medicina hospitalar. No entanto, não se limita a isso. Há anestesiologistas que se dedicam a apoiar mais os médicos da Medicina Geral e Familiar, no que diz respeito à medicina da dor e à medicina paliativa. Temos recursos humanos que estão a sair do hospital e a dedicarem-se a outras áreas onde a Anestesiologia é perita.

De qualquer das maneiras, é a nível hospitalar que se faz sentir mais a necessidade de anestesiologistas. O anestesiologista é responsável por otimizar o doente antes da entrada na sala cirúrgica, é responsável pelo doente no que diz respeito à eficiência do ato cirúrgico e depois no fim da cirurgia o anestesiologista continua a acompanhar o doente, quer no recobro quer nas unidades de cuidados intermédios. A presença do anestesiologista aumenta a segurança do doente e melhora os outcomes.

Ao contrário do passado, em que o anestesiologista ficava cingido à atividade cirúrgica, hoje acompanhamos o doente em todas as fases.

Existe, em Portugal, uma carência de especialistas, tendo em conta as necessidades atuais?

Sim, temos uma carência. Tem havido um acréscimo no número de anestesiologistas nos últimos anos. Isto é, há um maior número de profissionais, mas também há um maior défice. As necessidades são cada vez maiores, as solicitações diárias, nas diferentes áreas, são cada vez mais.

O anestesiologista realiza semanalmente o serviço de urgência, muitas vezes é solicitado para prestar apoio aos cuidados emergentes: ao socorro pré-hospitalar (com o número de VMER a aumentar, sendo que o staff médico predominante são anestesiologistas); à medicina de emergência intra-hospitalar, onde as escalas são colmatadas, em grande parte, por anestesiologistas, o que significa mais postos de trabalho.

Outra área de trabalho a nível hospitalar com tendência crescente é a dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica, nomeadamente na Cardiologia de Intervenção, na Neurorradiologia de Intervenção, na Gastrenterologia. É verdade que os exames são cada vez menos invasivos. Contudo, os doentes são cada vez mais frágeis. Há cada vez mais doentes com mais comorbilidades. Por isso, a equipa multidisciplinar de profissionais presentes na realização destes procedimentos já não dispensa a presença do anestesiologista.

Outra área em crescendo é a do controlo da Dor: da dor aguda e da analgesia de parto.

Na Medicina Intensiva, felizmente, o aumento do número de intensivistas diminuiu a necessidade da presença dos anestesiologistas.

 

“Ao contrário do passado, hoje o anestesiologista acompanha o doente em todas as fases”

 

Temos assistido a uma fuga de anestesiologistas para o privado. Apenas 60% dos profissionais trabalham no SNS. O que se pode fazer para parar esta sangria?

As saídas de colegas para o privado e para o estrangeiro não são atempadamente compensadas. Há uma carência de anestesiologistas também porque, nos últimos anos, a legislação laboral foi sendo aplicada aos médicos e isso implica atribuir descansos compensatórios, isto é, um médico que faz 24 horas de trabalho não vai trabalhar no dia seguinte – o que deixa mais horas a descoberto.

Outro motivo para a falta de especialistas é que a contratação dos novos anestesiologistas (que representam 20% dos quadros médicos) é feita contendo uma carga horária inferior em 30% aos contratos mais antigos.

Portanto, o que se pode fazer para fixar os anestesiologistas no SNS é melhorar a organização. No privado, o anestesiologista chega, tem tudo preparado, nada falta e consegue estar focado apenas na atividade anestésica. Isto leva muitos profissionais a fugirem dos obstáculos do SNS e a irem para o privado. É possível termos organização no SNS (é só escolher os líderes certos), sendo que, dessa forma, poderíamos reter mais profissionais no SNS.

Aproximar a remuneração dos anestesiologistas da que é oferecida pelo setor privado seria um caminho a seguir também?

É uma motivação, mas não é a única. Até porque, no SNS, também se consegue ter um bom vencimento. Esse não é o fator primordial – a organização é.

Quais são as maiores dificuldades que os anestesiologistas sentem no exercício da especialidade em Portugal, e particularmente no SNS?

O anestesiologista não trabalha sozinho, mas sim em equipa. Muitas vezes um elemento dessa equipa não pode estar presente e o procedimento tem de ser adiado. Estas falhas acabam por provocar mal-estar no anestesiologista.

Outro problema é que se sente cada vez mais uma falta de verbas para os materiais. Temos de estar até à última hora à espera que o hospital liberte o material. Isso provoca um atraso na atividade diária dos profissionais. Muitas vezes, falta organização dentro dos hospitais. Quando não trabalhamos todos para o bem do doente, há atrasos. No meu caso, o horário de trabalho começa às 8 horas da manhã, mas a atividade anestésica só se inicia às 9h30, e algumas vezes só ao final da manhã, depois de ultrapassados uma série de obstáculos, que nada têm a ver com Anestesiologia.

Como é que se compara a Anestesiologia portuguesa com a que é praticada na Europa?

Em termos de número de profissionais, de 2014 para 2017 passámos de 13,9 anestesiologistas por cada 100 mil habitantes para 15,1. No entanto, e tendo em conta estes dados, ainda estávamos aquém dos 17,9 recomendados pela World Federation of Societies of Anaesthesiologists. Em 2017, a Áustria tinha 39,3 anestesiologistas por 100 mil habitantes e a Alemanha 31. Contudo, em muitos países europeus, o rácio aumenta porque estes países incluem na equipa anestésica os médicos, enfermeiros e estagiários.

Em termos de procedimentos, estamos em linha com o que se faz na Europa. Na área cardiovascular, onde os procedimentos são cada vez mais diferenciados, temos uma partilha de conhecimentos. Estão muitas vezes presentes nos hospitais portugueses médicos de outros países que partilham os casos.

 

 “O que se pode fazer para fixar anestesiologistas no SNS é melhorar a organização”

Há utentes que esperam meses por exames que requerem a presença de um anestesiologista. Como é que a SPA olha para esta realidade?

Com muita preocupação. Mas, como disse, a presença do anestesiologista aumenta a qualidade e segurança e melhora o outcome do doente. Nunca podemos descurar a segurança dos procedimentos. Mas claro que sabemos que isto se pode repercutir na nossa comunidade. Em muitos procedimentos, como é o caso da colonoscopia, os doentes percebem que o anestesiologista vai fazer a diferença e só querem ser submetidos a um determinado procedimento com anestesia.

Como é que avalia a formação que é feita em Portugal nesta área?

A formação é, como presidente da SPA, um dos meus grandes objetivos. É preciso manter os standards da Anestesiologia e, nomeadamente, no que diz respeito à formação especializada. Os anestesiologistas e os internos têm, cada vez mais, preferido fazer o exame europeu de Anestesiologia, que os coloca ao mesmo nível dos colegas europeus. Temos profissionais muito atualizados.

A investigação é também um pilar importante para a SPA. Estamos a tentar ultrapassar as barreiras que existem.

 

“A presença do anestesiologista aumenta a segurança do doente e melhora os outcomes

 

A especialidade ainda é atrativa para os jovens médicos?

Continuo a achar que é muito atrativa. Por ser o primeiro a entrar e o último a sair do bloco, o anestesiologista integra a especialidade mais importante. Tem um papel crucial na liderança. O anestesiologista é o cerne da equipa médica – tem a responsabilidade pela função respiratória, cardiovascular, renal, o que é muito aliciante. Por isso, a Anestesiologia é, cada vez mais, uma das primeiras especialidades a ser escolhida e das primeiras a completar as vagas nos concursos a nível nacional – e é das especialidades que tem dos maiores números de vagas.

Com que desafios se vai deparar a Anestesiologia nos próximos anos?

O anestesiologista vai ter de saber, cada vez mais, trabalhar em equipa. Outro desafio é o da liderança – vamos ter de liderar equipas e todo o processo. Portanto, além das competências técnicas, temos de ter competências não técnicas. O anestesiologista tem de se preparar para ser, no futuro, o especialista mais importante dentro das instituições hospitalares.

Quais são os principais objetivos do seu mandato à frente da SPA?

A SPA está muito recetiva a trabalhar com todos os anestesiologistas a nível nacional. A SPA está de porta aberta para sócios e não sócios e disposta a ouvir os problemas de todos. Queremos investir na elevação dos standards da Anestesiologia – isto faz-se reforçando o papel da formação especializada e da investigação científica.

Outro objetivo é aproximar a SPA de outras sociedades cientificas, uma vez que somos uma especialidade transversal a muitas áreas.

TC/SO

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