“É uma falha grande não haver uma rede de referenciação hospitalar em dor!”

Beatriz Craveiro Lopes é anestesiologista e um dos rostos mais conhecidos da Medicina da Dor. Há mais de 30 anos que se dedica à sensibilização e formação em Dor, tendo fundado a Unidade Dor – atualmente, Centro Multidisciplinar de Dor - do Hospital Garcia de Orta, em Almada, em 1992. Em entrevista, defende a criação de uma rede de referenciação hospitalar e maior integração entre os diferentes níveis de cuidados.

 Hugo Ribeiro, coordenador da IM3M diz que a Dra é “a mãe da Medicina da Dor”. É assim que se sente?

É uma delicadeza do meu colega, à qual só consigo reagir com humildade… A Medicina da Dor foi sempre uma bandeira pessoal e profissional, sem dúvida! O ‘bichinho’ da dor começou logo em 1982, no meu Internato, e em 1992 avancei com o que viria a ser a Unidade Dor do HGO, que agora é Centro Multidisciplinar de Dor Beatriz Craveiro Lopes. Quiseram dar o meu nome… Gostaria de lembrar que antes de mim, houve outros nomes, como o Dr. José Luís Portela no IPO Lisboa, que abriu a primeira Unidade Dor do país, e depois o Dr. Zeferino Bastos, no IPO Porto. O Dr. Portela foi quem me entusiasmou a lutar por estes doentes quando foi meu tutor no Internato; é o meu ‘pai da dor’. Percebi desde cedo como era importante contar com diferentes especialidades para que as pessoas com dor pudessem ter mais qualidade de vida. A Medicina da Dor é das disciplinas da Medicina humana mais inclusivas, porque todos os profissionais de saúde – médicos e não médicos – são essenciais. Tem-se procurado sempre encontrar novas soluções para  os doentes com dor, o que implica alguma perseverança de quem está no terreno para enfrentar os muitos desafios existentes. Ao longo destes anos, obviamente que é visível que existem especialidades mais afins a esta competência, como  a Fisiatria, porque a dor musculoesquelética é a mais prevalente de todas. É muito interessante ver que muitas unidades de dor hospitalares contam com fisiatras. Assim como internistas – atualmente somente no HGO -, entre outros profissionais médicos e não médicos. É, de facto, uma disciplina muito inclusiva e transversal.

 

Ao fim de três décadas, o que ainda falta fazer?

Muita coisa, apesar dos avanços positivos. É preciso, sobretudo, criar uma rede de referenciação hospitalar nesta área, de modo que haja um escalonamento na prestação de cuidados de saúde na Medicina da Dor – menos ou mais diferenciados. Esta medida vem, inclusive, ao encontro da tipologia das unidades de dor que existe há 14 anos e que já está desatualizada… Uma circular normativa da Direção-Geral da Saúde (DGS) de julho de 2008 determinou tipologias para as unidades de dor. O problema é que esta norma nunca mais foi atualizada, apesar dos passos importantes que se têm dado. Um exemplo muito concreto é a Unidade Dor do HGO e que há 5 anos evoluiu para Centro Multidisciplinar de Dor.

 

“… não basta alertar para a relevância do diagnóstico e tratamento atempados da dor, é preciso ter condições logísticas e recursos humanos e tecnológicos”

 

 

Com essa rede de referenciação também se permitiria sensibilizar mais profissionais de saúde para a importância dos cuidados em dor?

Sim, sem dúvida, mas não basta alertar para a relevância do diagnóstico e tratamento atempados da dor, é preciso ter condições logísticas e recursos humanos e tecnológicos para se fazer alguma coisa. Nem sempre é fácil partir do zero… O objetivo da rede é tornar a prestação de cuidados mais eficiente, hierarquizando-se sempre com base no chamado patient journey. Não se trata de uma novidade, já existe para outras patologias e com provas dadas, como é o caso do acidente vascular cerebral. É uma falha muito grande não se ter ainda uma rede de referenciação hospitalar em dor!  Todos ganham, quer doentes como profissionais de saúde, gestores e administradores hospitalares com essa medida. As administrações devem apostar mais nestas unidades e devem ter noção de como podem prevenir todos os custos humanos e económicos associados ao não tratamento da dor. Não podemos esquecer que existem situações muito complexas, que exigem acompanhamento em centros especializados. Nem sempre é suficiente apenas uma consulta de dor, por mais importantes que estas o possam ser.

 

Esses centros de referência existiriam apenas nalgumas regiões?

O nosso país não é muito grande, logo deviam localizar-se nas três regiões principais (Norte, Centro, Sul).

“Com interdisciplinaridade ter-se-ia equipas de diferentes especialistas e grupos profissionais a seguirem protocolos comuns”

 

Mas para se chegue a esse patamar, falta a tal rede…

Exato! É preciso recategorizar as unidades que já existem, atualizando a norma da DGS, para que se dê resposta a todas as necessidades destes doentes, que não se esgotam no diagnóstico e no tratamento. A vocação principal das unidades de dor é diagnosticar e tratar, mas também investigar e dar formação. Outro aspeto essencial: a interdisciplinaridade deve ser um aspeto assumido pelos profissionais. Nas atuais categorias da DGS fala-se em unidades multidisciplinares, o que foi um grande avanço em 2014, quando foi lançada a circular normativa. Mas, hoje em dia, devemos caminhar no sentido da interdisciplinaridade.

E porquê?

Porque todos temos objetivos comuns que passam essencialmente por prestar cuidados individualizados e humanizados, com técnicas da legis artis. Com interdisciplinaridade ter-se-ia equipas de diferentes especialistas e grupos profissionais a seguirem protocolos comuns, sempre fundamentados na Medicina Baseada na Evidência, como é lógico. Mas, nunca esquecendo a individualidade de cada pessoa. Pessoalmente, gostaria que fosse estabelecida esta rede de referenciação hospitalar somente após a recategorização das unidades de dor para se ter em conta a evolução ao longo destes anos.

 

“… apostar-se na Medicina da Dor nos CSP é uma extraordinária mais-valia para os doentes”

 

E nos cuidados de saúde primários (CSP), também se deveria apostar mais na Medicina da Dor?

Naturalmente! E não apenas nos CSP, porque a dor está sempre presente nos cuidados continuados integrados e nos cuidados paliativos. É impossível estar dissociada dos diferentes níveis [de cuidados]. No caso específico dos CSP, faz todo o sentido dar-se atenção à dor, porque quem vê a maioria dos doentes é o médico de família. Não há unidades de dor nos CSP e é um tema que costuma inclusive gerar alguma controvérsia… Pessoalmente, sou sempre a favor de iniciativas e projetos que ajudem estes doentes. Veja-se o caso da Consulta de Dor Crónica na USF Lethes do Dr. Raul Marques Pereira, em Ponte de Lima. Só posso ficar satisfeita por haver este apoio de proximidade. O especialista em Medicina Geral e Familiar pode resolver muitos casos, permitindo assim que sejam referenciados para o hospital apenas os mais graves e complexos. Investir na dor nos CSP é um ganho para o próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS), para os doentes e para os profissionais, porque cerca de 90% dos casos de dor crónica podem ser acompanhados pelo médico de família. A palavra ‘ultrasecreta’ é, todavia, integração. Os cuidados primários e secundários têm de estar integrados, para que haja efetivamente a implementação do patient journey. É a solução para que deixemos de ter listas de espera de 3 anos nos hospitais ou que não se consiga sequer referenciar para unidades de dor. Em suma, apostar-se na Medicina da Dor nos CSP é uma extraordinária mais-valia para os doentes.

 

A criação da especialidade de Medicina da Dor poderia ser o passo decisivo para se avançar com a rede de referenciação hospitalar e com a integração a diferentes níveis?

Quando se criou a Competência [em Medicina da Dor], a ideia era precisamente caminhar para a especialidade, contudo para isso é preciso que haja massa crítica, médicos com conhecimento e experiência. Sempre acreditei que quando se começa um projeto se deve ir step-by-step, de preferência baby step-by-baby step, porque quando se atropelam patamares, pode-se correr riscos desnecessários. Repare que o Colégio da Competência só começou oficialmente em 2009. Logo que haja essa massa crítica, propõe-se então a criação da especialidade à Ordem dos Médicos. O mais importante, e que consta dos objetivos da criação da Competência, foi o reconhecimento da dor crónica como doença e como um grave problema de saúde pública, a aplicação do modelo biopsicossocial, a resposta à necessidade de proporcionar cuidados diferenciados, assim como o  reconhecimento da existência de profissionais especializados e também de estruturas dedicadas.  Hoje, acrescento, também,  se defende a criação da rede de referenciação hospitalar.

 

“A IM3M só pode estar de parabéns, só podemos estar gratos, porque é mais um contributo para a sensibilização e formação em Medicina da Dor.”

 

Até lá, o ideal é manter a formação para que haja maior conhecimento nesta área?

Sem dúvida! A IM3M só pode estar de parabéns, só podemos estar gratos, porque é mais um contributo para a sensibilização e formação em Medicina da Dor. Iniciativas como esta fazem falta, quer para formar mais profissionais como para se poder avançar com mais investigação.  É absolutamente essencial fazer investigação clínica. A investigação básica já é muito boa em Portugal, mas a clínica é ainda muito incipiente e é fundamental ter-se uma noção mais concreta do que se passa com a dor crónica no nosso país.

 

Está reformada desde junho de 2019, mas não parou desde então. Até ao final do ano passado manteve-se a tempo parcial no Centro Multidisciplinar Dor do HGO e ainda é chamada para várias palestras. A luta pela Medicina da Dor vai ser até ao fim?

Sim! Não podemos parar e vou continuar a ajudar. É uma grande alegria ver jovens tão empenhados nesta luta, como os colegas da IM3M, porque as gerações têm de se renovar. Os doentes precisam de todos nós.

SO

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