“Estima-se que 10 a 14% dos adultos possam ter diabetes e mais de 60% excesso de peso ou obesidade”

De acordo com João Jácome de Castro, presidente das 13.as Jornadas Práticas de Diabetologia e Obesidade em MGF da Zona Sul, a diabetes e a obesidade são das doenças endócrinas mais frequentes. Os números são importantes e é preciso que os médicos definam objetivos para cada doente e se dediquem a tratar estas patologias. Ainda assim, o endocrinologista é otimista quanto ao futuro, uma vez que as terapêuticas são cada vez “mais eficazes e seguras”.

Qual a importância de organizar as Jornadas de Diabetologia e Obesidade para a Medicina Geral e Familiar (MGF)?
Estas jornadas representam hoje a maior reunião anual de diabetes e obesidade da zona Sul e têm um formato diferente das outras reuniões, uma vez que estão centradas na prática clínica e são dirigidas para o debate. O objetivo é discutir os problemas com que nos confrontamos diariamente e grande parte da reunião baseia-se em sessões de televoter, interativas.

Vamos discutir alguns dos grandes temas da atualidade e vamos também ao encontro de temas sugeridos pelos nossos colegas de MGF em inquéritos que realizamos todos os anos.

As sessões são muito participadas, muitas delas baseadas em casos clínicos reais que os colegas da MGF trazem para debater connosco.

Porque para tratar a diabetes e a obesidade é fundamental trabalhar em equipa – Endocrinologia, Medicina Interna, Medicina Geral e Familiar, enfermeiros e nutricionistas – procuramos nestas jornadas envolver todas estas especialidades.

Contamos com cerca de 500 inscritos! Não queremos, no entanto, que as jornadas cresçam mais para não as descaracterizar, para que não deixem de ter este cunho familiar, em que temos a possibilidade de falar uns com os outros e discutir os problemas das nossas práticas clínicas.

Em Portugal e não só, a maior parte do tempo das reuniões científicas é destinado a apresentações, “aulas”, das quais sobra pouco tempo para debate. Nestas jornadas procuramos que haja um tempo muito confortável, para que se possam debater os temas e para que cada um possa dar a sua opinião e esclarecer as suas dúvidas. Este é realmente um aspeto diferenciador que caracteriza esta reunião: o espaço para a discussão.

Considero que estas jornadas têm um formato muito bem conseguido. E recebemos muitos comentários simpáticos por parte da audiência. Saio sempre muito contente desta reunião. Dá-me muito gosto organizá-la e participar nela.

 

“Estas jornadas representam hoje a maior reunião anual de diabetes e obesidade da zona Sul”

 

Qual a prevalência destas duas patologias na zona Sul? Estão a par com a problemática a nível nacional?
Neste momento, em Portugal, entre a população adulta, estima-se que entre 10 a 14% das pessoas possa ter diabetes e que mais de 60% possa ter excesso de peso ou obesidade. São números muito preocupantes.

 Se me questiona acerca da zona Sul, os dados nacionais que dispomos não mostram grande diversidade entre a zona Sul e a zona Norte, em termos de prevalência.

A realidade é que ainda existem algumas assimetrias regionais em especial no que respeita às complicações da diabetes. Porém, eu diria que não temos dois países, um a Norte e outro a Sul. É muito mais o que une o Norte e o Sul do que aquilo que os separa.

Estas pessoas têm de ser abordadas com critério. É preciso que os médicos invistam no diagnóstico atempado e no tratamento adequado. O combate à inércia clínica é muito importante. Os médicos são muito pressionados, porque há falta de tempo e de condições e porque as equipas não são multidisciplinares, tal como deveriam ser. É preciso ânimo e vontade para nos dedicarmos à obesidade e à diabetes.

Temos de definir objetivos rigorosos para cada pessoa, de a acompanhar em cada consulta, de acordo com os mesmos, e ir intensificando os passos terapêuticos.

As terapêuticas para a diabetes e para a obesidade têm evoluído muito. Atualmente, é muito mais fácil tratar melhor a diabetes e a obesidade do que era há 30 anos.

 

“O combate à inércia clínica é muito importante”

Os novos fármacos têm vindo a alterar o paradigma do tratamento da diabetes, uma vez que ajudam a controlar a glicemia, assim como os fatores de risco cardiovasculares. Contudo, os números e as consequências da doença continuam a aumentar. Quais são, neste momento, as maiores dificuldades no seguimento e controlo destes doentes?
Podemos dividir as grandes dificuldades em três alíneas: a) é preciso tentar intervir no aumento da prevalência destas doenças em termos de medidas de prevenção, como alterações de estilo de vida; b) é preciso aumentar o seu diagnóstico, de forma a torná-lo mais precoce, uma vez que está estimado que quase 1/3 das pessoas com diabetes possam não estar diagnosticadas. É muito importante este esforço, no sentido de diagnosticar mais e mais cedo; c) é fundamental tratar melhor estas pessoas, porque sabemos que muitas não estão tratadas de acordo com os objetivos.

Em suma, é preciso prevenir e intervir no sentido de evitar este aumento brutal que tem vindo a existir; depois é fundamental diagnosticar os casos que já existem e que estão subdiagnosticados ou que não estão diagnosticados, de forma a tratá-los mais cedo, influenciando o curso da história natural da doença e evitando as complicações à distância; e precisamos de ser mais exigentes no controlo da doença e a cumprir os objetivos.

Ou seja, hoje em dia, devemos preocupar-nos em definir objetivos para cada doente e em ser rigorosos na prossecução dos mesmos, porque os doentes são todos diferentes. E, em cada vez que reavaliamos um doente, devemos preocupar-nos em parar, respirar fundo e pensar se está ou não a ir ao encontro do objetivo e o que é que podemos fazer de melhor.

O desafio está muito mais nas mãos dos médicos. Porque, de facto, os fármacos são melhores, mais eficazes e mais seguros, e, além de tratarem a diabetes no sentido restrito da palavra, permitem-nos também interferir nos fatores de risco cardiovasculares associados: peso, pressão arterial, colesterol e, ainda, interferir na evolução das doenças associadas: cardíaca e renal, em particular.

“Atualmente, é muito mais fácil tratar melhor a diabetes e a obesidade do que era há 30 anos”

 

Como vê os avanços das terapêuticas para a diabetes. Quer destacar alguma?
Vejo com imensa alegria e como um grande desafio o facto de termos novos e melhores medicamentos para tratar a diabetes. Neste momento, as duas classes que talvez faça sentido destacar são os inibidores SGLT2 e os agonistas GLP-1, que permitem não só controlar a diabetes no sentido restrito da palavra, controlando a glicemia, sem hipoglicemias, mas também contribuem significativamente para a redução do peso corporal e para a melhoria do prognóstico cardiovascular e renal.

Além disso, vêm aí novas famílias. Em Portugal vai ser lançada, acredito (e desejo) que até final do primeiro semestre de 2024, uma nova família “prima” dos agonistas GLP-1, os duplos agonistas. O tirzepatide é uma molécula que reúne duas famílias (agonistas GLP-1 e GIP) e que apresenta excelentes resultados na redução da glicemia e do peso. Ainda se aguardam resultados relativamente à proteção renal e cardiovascular.

 

Qual a sua opinião relativamente à constituição das ULS no que respeita ao seguimento e tratamento da diabetes? Considera que esta mudança pode ter impacto?
Pode ter impacto com certeza. Qual vai ser, não sabemos! Considero que uma gestão integrada pode trazer vantagens, mas é preciso ver como vai ser implementada. Há, no entanto, aspetos que estão a montante deste tipo de soluções e que têm de ser resolvidos, como é o caso dos salários dos médicos, dos enfermeiros e dos outros profissionais de saúde.

A outra questão é o tempo considerado para que os médicos se dedicarem à sua atividade clínica. É fundamental que se entenda que o tempo que um médico despende em consulta a ver um doente é um investimento – porque não é gastar, é investir.

Além disso, o médico deve ter tempo para reunir com os colegas, para discutir os casos clínicos; para ter reuniões de formação; reuniões de apresentação de temas; para falar com as famílias dos doentes; e para refletir. Deve ter ainda tempo para se atualizar e para se dedicar à investigação e ao ensino. Todos estes aspetos são fundamentais para que os médicos evoluam e sejam cada vez melhores na sua atividade clínica.

Um outro aspeto muito importante consiste na implementação de parâmetros que permitam não só a quantidade, mas também a qualidade dos serviços prestados.

É, pois, essencial que haja um controlo rigoroso da qualidade e um grande investimento no tempo e nos salários dos médicos.

É também essencial que não seja descurado o investimento nos equipamentos e formação, de modo a estimular as novas gerações de médicos e a promover a sua fixação, quer em hospitais, quer nos cuidados primários de saúde. É também muito importante que haja regulação relativamente ao exercício da medicina nos grupos privados, de modo a que a prática médica não seja inadequadamente influenciada por números, assim como é fundamental combater o recurso excessivo a meios complementares de diagnóstico e terapêutica desnecessários.

Acima de tudo, é preciso preservar o caráter humanista e os valores éticos da medicina.

 

“É fundamental que se entenda que o tempo que um médico despende em consulta a ver um doente é um investimento”

Falando agora da obesidade. Como vê o tratamento desta patologia em Portugal?
Com uma perspetiva muito animadora. Durante muitos anos, os medicamentos para tratar a obesidade eram pouco eficazes e pouco seguros, mas, agora, os fármacos são francamente mais eficazes e seguros.

Por outro lado, atualmente, a forma como olhamos para a obesidade é completamente diferente. Hoje é considerada uma doença e não um capricho.

Atualmente, é sabido que há alterações nos mecanismos neuro-hormonais – no que respeita ao controlo do apetite, do bem-estar, do metabolismo em geral, e do tecido adiposo em particular – que fazem com que algumas pessoas tenham tendência para ter mais peso. Isso não deve, de modo algum, ser um motivo de culpabilização.

Por outro lado, começamos a ter fármacos que atuam em alguns desses mecanismos, como do apetite e da saciedade, do equilíbrio neuro-hormonal e do conforto perante a oferta de alimentos e a ingestão dos mesmos, o que é muito animador.

No que respeita às novas classes para tratar a obesidade – estou a referir-me fundamentalmente aos agonistas GLP-1 e aos agonistas duplos -, temos, em Portugal, o liraglutido e o semaglutido (ainda sem as doses adequadas para o tratamento do excesso de peso e obesidade) e vamos ter o tirzepatide. Mas, vem aí novas classes.

As perspetivas são muito animadoras, por exemplo, com o liraglutido temos perdas médias de 8%, cerca de 1/3 dos doentes perdem mais de 10% e 15% dos doentes perdem mais de 15% do peso corporal, o que é extremamente importante e se acompanha marcados benefícios para a saúde.

Mas, com o semaglutido, nas doses para a perda de peso, que ainda não estão em Portugal, as perdas médias não são de 8%, mas de cerca de 17% e, em vez de 1/3 dos doentes perderem mais de 10%, temos 75% dos doentes a perderem mais de 10%. Mais de 50% dos doentes perdem mais de 15% do peso e 1/3 dos doentes perdem mais de 20%.

Tal como referi, tudo leva a querer que até ao final do primeiro semestre tenhamos, em Portugal, um novo fármaco, o tirzepatide, que é um agonista duplo, para o qual as perdas de peso na obesidade se estimam que sejam em média de 23%, com 90% dos doentes a perder mais de 10%, 80% dos doentes a perder mais de 15%, 2/3 dos doentes a perder mais de 20% e mais de 1/3 dos doentes a perder mais de 25% do peso corporal.

Isto é um desafio brutal. Contudo, temos o problema da comparticipação destes fármacos. Nós, endocrinologistas, e as sociedades científicas entendemos que deveria haver um modelo de comparticipação para a obesidade. Terão de ser definidos critérios e pensar para que doentes é que este medicamento deve ser prescrito e comparticipado; durante quanto tempo; e de acordo com que tipo de resultados. Além disso, deve haver um mecanismo de supervisão, ou seja, aquilo que em meio militar se chama comando e controlo. O facto de haver pouca supervisão no nosso país é uma falha grave. Há pouco planeamento e muito improviso.

 

“Acima de tudo, é preciso preservar o caráter humanista e os valores éticos da medicina”

Então, a comparticipação é um dos próximos passos a dar? Os doentes não deveriam começar a tomar estes medicamentos antes de chegarem à obesidade?
Na minha perspetiva pessoal é um erro pensar que estes tratamentos deverão estar apenas restritos a pessoas com níveis graves de obesidade. Claro que isto é um tema complexo, mas se interviermos mais cedo vamos conseguir modificar muito mais o prognóstico.

Portanto, se vamos utilizar as nossas capacidades de intervenção apenas em doentes com obesidade mórbida, com obesidade extrema, estamos a perder um capital enorme de doentes que ainda estão muito aquém desses níveis, mas que, com intervenção, não evoluem e não vão ter um conjunto enorme de complicações. É preciso balancear.

 

“O facto de haver pouca supervisão no nosso país é uma falha grave. Há pouco planeamento e muito improviso”

Quais as suas expectativas para estas jornadas?
As minhas expectativas são muito animadoras. Temos já mais de 400 inscritos. Temos muitos médicos de Medicina Geral e Familiar, endocrinologistas, internistas, enfermeiros, e nutricionistas, o que na diabetes é particularmente importante, porque trabalhamos em equipa.

O ambiente é sempre muito dinâmico. Temos sessões de apresentação de casos clínicos e criámos uma sessão nova. Além dos habituais casos clínicos – para os quais convidámos determinadas unidades de saúde familiar -, os colegas mais novos também vão poder apresentar casos clínicos rápidos, para discutir com os organizadores e com a plateia.

Vamos discutir aspetos muito importantes. Vamos traçar o panorama atual do que se passa em Portugal e no mundo relativamente à diabetes; apresentar as novas orientações terapêuticas propostas pelas sociedades portuguesa e brasileira de Endocrinologia e Diabetes; e vamos apresentar alguns documentos de consenso entre a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo a Sociedade Portuguesa de Cardiologia, a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Vamos discuti-las com os colegas, nomeadamente relativamente à monitorização da glicemia, ao tratamento dos doentes e ao acompanhamento da insuficiência cardíaca nos doentes com diabetes e obesidade. Vão ser também abordadas questões relacionadas com o pé diabético e com a diabetes durante a gravidez.

Acredito que as jornadas vão ser muito participadas e muito dinâmicas, com o objetivo de que cada um dos participantes saia mais bem preparado para ver os seus doentes na semana seguinte.

 

Sílvia Malheiro 

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