24 Jan, 2023

Entrevista. “A perturbação borderline é a mais frequente, é um problema de saúde pública”

João Carlos Melo, psiquiatra no Hospital Fernando da Fonseca (HFF), é um dos formadores do Curso de Introdução às Perturbações da Personalidade (PP), promovido pela Secção de Perturbações da Personalidade da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. A iniciativa irá decorrer online nos dias 18 e 25 de fevereiro e 4 de março. Em entrevista fala do estigma que existe em relação às PP, nomeadamente a borderline.

Não é habitual realizarem-se cursos sobre perturbações da personalidade (PP). Que relevância tem esta ação formativa?

Tem o máximo de relevância. Não tem havido muitas informações e formações sobre PP, quer no Internato como no pós-graduado em Psiquiatria. O mesmo acontece na Psicologia. Infelizmente, na mentalidade atual ainda persistem ideias muito distorcidas e condicionadas pelo estigma acerca das PP, tanto que não é raro utilizarem-se conceitos diagnósticos como insultos. Por exemplo, diz-se de forma depreciativa, sem qualquer empatia, que uma pessoa é obsessiva, fóbica, ansiosa… Também se associa a PP a pessoas que são sempre conflituosas, manipuladoras ou mentirosas. Mas isso não é verdade, haja ou não uma PP, as pessoas podem ter essas características menos positivas. Esta visão acontece sobretudo no caso das PP do grupo B (segundo o DSM-5): borderline, narcísica, histriónica e antissocial.  É muito importante clarificar estes conceitos e combater o estigma, nomeadamente no que diz respeito à personalidade borderline. E porquê? A perturbação borderline é a mais frequente, a mais grave, aquela que consome mais recursos e um problema de saúde pública.

“No caso da borderline, as pessoas não são aquilo que se pensa habitualmente: conflituosas, manipuladoras e mentirosas”

Por que existe esse estigma por parte de profissionais de saúde mental?

Alguns técnicos de Saúde Mental continuam a pensar que não existe uma solução para as PP e acabam por transmitir essa ideia errada aos pacientes. De facto, não há fármacos específicos para as PP, medica-se consoante os sintomas. Mas o mesmo acontece com outras patologias psiquiátricas. No caso da borderline, as pessoas não são aquilo que se pensa habitualmente: conflituosas, manipuladoras e mentirosas. Algumas são-no, mas isso não se deve diretamente à sua personalidade. Aliás, posso garantir que têm muitas qualidades. No Hospital Fernando (da) Fonseca, temos há 2 anos um programa de apoio a pacientes e familiares e os resultados têm sido muito positivos. De uma maneira geral, são pessoas muito empáticas, generosas, intuitivas e muitas delas dedicam-se a causas humanitárias e fazem voluntariado. Obviamente, quando estão em sofrimento não são empáticas e têm crises de descontrolo emocional. Mas isso deve-se ao que sentem e à forma como reagem ao sofrimento e não à sua personalidade.

 

No curso vai abordar a distinção entre temperamento, carácter e personalidade. De forma sumária, quais as diferenças?

Não existe um consenso sobre estes conceitos, contudo isso não tem de ser um problema. O mais importante é que haja um referencial para que se saiba do que se fala. As propostas que sugiro são as que se seguem. A personalidade é aquilo que define a pessoa, o conjunto das suas caraterísticas, o que a define na sua individualidade. O caráter é, digamos, a personalidade em ação, a forma como as várias caraterísticas da pessoa se exprimem numa situação concreta (rejeição, elogio, etc.) Mas também se fala em carácter no sentido de bom ou mau. As de mau caráter são as que têm características psicopáticas. Nas PP existe uma outra, além da borderline, que poderia ser considerada doença: a antissocial. Os psicopatas não se conseguem encaixar em nenhuma categoria de doença e não é sinónimo de perturbação antissocial. Os psicopatas têm mau carácter, alguns cometem crimes, mas a maioria, não; todavia, têm relações abusivas, nada empáticas, não sentem culpa ou compaixão e usam os outros para determinado fim ou pelo simples prazer de os enganar.

Quanto ao temperamento, no fundo é o ritmo de cada pessoa, a forma como cada um reage aos vários estímulos externos e internos – uns são mais introvertidos, outros mais extrovertidos, mais ou menos sensíveis, mais ou menos reativos. O temperamento já nasce connosco e está muito dependente da hereditariedade, da genética, e mantém-se praticamente inalterado ao longo da vida.  Atualmente, após vários estudos, considera-se que o desenvolvimento da perturbação borderline está muito ligado ao tipo de temperamento e a determinadas situações traumáticas.

“A perturbação borderline é uma doença grave e crónica e com este tipo de programa é possível diminuir o sofrimento das pessoas e dos seus familiares” 

De que forma se devem abordar as PP na prática clínica, nomeadamente no caso da borderline, que vê como um problema de saúde pública?

Neste curso vou falar sobre um programa que concebi e que tem sido posto em prática no Hospital Fernando da Fonseca. Estamos  a terminar a 6.ª edição. Cada uma destas sessões tem três componentes: psicoterapia individual, grupo terapêutico para pacientes e grupo terapêutico para familiares. O dos pacientes tem uma periodicidade semanal, ao longo de 12 semanas, e o dos familiares consiste em seis sessões de periodicidade quinzenal. O objetivo é que se conheça as características da doença e como se pode lidar com a mesma. Este tipo de intervenção não exige propriamente grandes meios. Basta querer-se ajudar estas pessoas. A perturbação borderline é uma doença grave e crónica e com este tipo de programa é possível diminuir o sofrimento das pessoas e dos seus familiares.

Fala em doença, mas a DSM-5 não a considera como tal. Porquê?

Por várias razões. Uma PP, por definição, consiste em traços de personalidade que são excessivos, desadaptativos e que predominam no seu comportamento. Dos nove critérios do DSM-5 referentes à personalidade borderline, apenas dois – impulsividade e problemas específicos nas relações com outras pessoas – é que são traços de personalidade de todas as pessoas. O mesmo acontece em relação à perturbação antissocial.  Além disso, quando se fala em doença mais facilmente se sente empatia pelo doente, procurando ajudá-lo, inclusive apostando em mais investigação. Mas, independentemente de se designar doença ou perturbação da personalidade, o mais importante é que os profissionais de saúde ajudem estas pessoas. Existem formas de o fazer, não têm de sofrer tanto como é habitual. Nem eles, nem os seus familiares.

SO

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