13 Jan, 2022

Nuno Jacinto. “É fundamental libertar os CSP desta carga burocrática e os MF deste trabalho”

Em entrevista exclusiva, o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) alerta para o cansaço e desgaste dos profissionais de saúde e sublinha a importância da automatização de toda a carga burocrática associada à gestão dos doentes-covid.

Como descreve o dia a dia do médico de família, perante a gestão do aumento do número de infeções?

Tem sido um dia a dia atribulado, porque temos muitos mais casos [de covid-19]. Não podemos lidar com 30/40 mil casos por dia da mesma forma como lidávamos quando tínhamos mil ou dois mil. A maioria destes são pessoas que testam positivo, mas que não apresentam sintomas ou que têm sintomas muito ligeiros. Até à mais recente atualização da norma, promulgada pela Direção-Geral da Saúde (DGS), a sobrecarga do Trace COVID era muito grande e obrigava a contactos muito frequentes.

Ainda assim, está longe de ser um dia a dia como gostaríamos, porque o sistema ainda não está perfeitamente alinhado ao nível das baixas, das declarações de isolamento, dos utentes saberem o que é que têm de fazer, do atendimento pela linha SNS24, o que obriga ainda a bastantes contactos da nossa parte.

Com mais casos positivos [de infeção pelo SARS-CoV-2], temos também as ADR com mais movimento e mais recursos humanos alocados para as mesmas. Também continuamos com os centros de vacinação, o que obriga a presença de um médico – que é quase sempre um médico de família – e temos toda a restante pressão da atividade assistencial que continua a existir.

Como muitos médicos [de família] estimularam, ao longo deste período, o contacto por e-mail, esta também é uma tarefa que ocupa grande parte do nosso tempo, para responder às múltiplas solicitações. Continuamos a ser um bocadinho aqueles médicos “dos sete instrumentos”, a tentar “apagar os fogos” todos ao mesmo tempo, o que não é nada fácil…

De que modo esta sobrecarga afeta os médicos de família em termos de motivação?

Os médicos de família estão muito cansados na sua generalidade, bem como as equipas com quem trabalhamos. Existe uma grande dificuldade em lidar com estas tarefas todas e surge uma grande sensação de cansaço e de não conseguirmos chegar a todo o lado que se vai apoderando de nós. É a sensação de que por mais que trabalhemos, há sempre coisas para fazer. Como se estivéssemos num barco que está a meter água e vamos retirando essa água com um copo. Vemos o trabalho acumular-se e acaba por ser frustrante neste sentido.

Consequentemente, tudo isto origina também ausências por cansaço, por burnout. Origina dificuldade em conseguir colmatar falhas que existam nas equipas por colegas que se reformam, que estão de licença de maternidade, que ficam em isolamento ou estão positivos e que nós precisamos de substituir.

O que é que propõe no sentido de melhorar um sistema que ainda não é viável perante as circunstâncias?

Todas estas questões burocráticas têm de ser automatizadas. Nós – Serviço Nacional de Saúde – temos de fazer o seguimento de quem tenha teste positivo e sintomas ou doença que o justifique e não de quem é assintomático ou apresenta sintomas muito ligeiros e que não precisa de qualquer intervenção médica.

Em relação às ADR, há muito tempo que dizemos que devia haver equipas específicas para estas unidades. Em vez de se desviarem os médicos de família, estas equipas podem também ser responsáveis por fazer o seguimento dos doentes com sintomas mais importantes.

O próprio rastreio de contactos está a ser muito difícil para as unidades de saúde pública. No SNS24 devia haver um reforço, bem como do lado da Saúde Pública. Nós, médicos de família, trabalhamos em rede: quando um falha, isso reflete-se no trabalho dos outros. Se o SNS24 não responde, as questões são-nos colocadas a nós.

Em definitivo, temos que deixar de olhar para casos e passar a olhar para doentes, como fazemos para todas as outras doenças. É fundamental libertar os cuidados de saúde primários desta carga burocrática, deste trabalho que na realidade não tem impacto rigorosamente nenhum e que não deveria estar a ser feito pelos médicos de família.

SO

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