20 Jan, 2022

Rastreios ao cancro abaixo das expectativas. “Temos uma mortalidade totalmente evitável”

Portugal está a retomar os valores de rastreio oncológico pré-pandemia mas há centenas de milhares de portugueses elegíveis que não são chamados, refere o professor universitário e médico de saúde pública, em entrevista.

Qual o impacto que a pandemia teve nos rastreios oncológicos em Portugal?

As atividades de rastreio oncológico foram desintensificados no início da pandemia. No entanto, durante o ano de 2021, Portugal tem vindo a retomar os valores de rastreio, homólogos aos verificados no período pré-pandémico. É evidente a retoma mas está ainda por alcançar um aumento dos convite para rastreio oncológico de forma a convocar todas as pessoas elegíveis.

Essa retoma é evidente desde que período?

Os dados de novembro de 2021 evidenciam já que o número de utentes convidados para os rastreios de cancro da mama, cancro do colo do útero e cancro colorretal já é similar ao período pré-pandémico.

Novembro é o primeiro mês em que os valores atingem patamares de 2019?

Exatamente. Nalguns casos temos até valores superiores, dependendo da região, ao período pré-pandemia. No caso do cancro da mama, convocámos 402 mil mulheres em 2019, caímos para as 216 mil em 2020 e em 2021 já vamos em 481 mil, o que significa um incremento de 20%. Houve também um aumento nas mulheres com rastreio realizado: de 250 mil em 2019 para 267 mil em 2021. Aqui a recuperação foi mais acentuada.

Qual foi o rastreio mais afetado pela pandemia?

O rastreio ao cancro do colo do útero foi o mais afetado, porque é implementado pelos médicos de família – e que foram direcionados para a atividade assistencial específica da Covid-19. Aqui nota-se um efeito diferente. Em 2019, convidámos 193 mil mulheres e em 2021 182 mil. Em termos de mulheres rastreadas, passámos de 174 mil em 2019 para 168 mil, um decréscimo de 4%.

Qual o panorama relativamente ao cancro colorretal?

Aqui o cenário é positivo. Tivemos 259 mil pessoas convidadas em 2019, enquanto que, em 2021, este número aumentou para 307 mil (+19%). Quanto às rastreadas, passámos de 85 mil em 2019 para 164 mil em 2021 – quase o dobro. No entanto, temos de colocar estes valores em perspetiva. Por exemplo, no que diz respeito ao cancro do colo do útero, faltam convocar mais de 650 mil mulheres – que já deveriam ter sido convocadas.

Ainda estamos longe de recuperar os rastreios e convocatórias que ficaram por realizar em 2020?

Ainda há uma margem de crescimento. Há que recuperar o que não feito o ano passado mas também há que garantir que convocamos todas as pessoas que efetivamente são elegíveis – coisa que nunca fizemos nos programas de rastreio.

Porque é que não se convocam todas as pessoas elegíveis?

Os programas de rastreio têm diferentes níveis de implementação a nível nacional. No caso de Lisboa e Vale do Tejo (LVT) ou no Algarve, existe uma escassez muito grande de convites para o rastreio do cancro do colo do útero. Este processo depende da atividade das equipas de saúde familiar. No entanto, a escassez de convites é um cenário heterogéneo a nível nacional, o que nos preocupa porque tem um caráter sistémico.

No entanto, ainda subsistem grandes assimetrias nos rastreios a nível regional?

Depende do rastreio. No caso do cancro da mama, temos uma boa atividade do programa de rastreio em todas as regiões, isto é, estamos a convocar quase toda a população elegível. No entanto, na região de LVT esta implementação está muito aquém das expectativas, com valores inferiores a 20%. Há aqui uma assimetria, ou seja, LVT está muito abaixo do padrão do restante território.

Existe alguma meta definida para as diferentes ARS no que diz respeito à adesão da população ao rastreio?

A nível europeu, a meta, com que Portugal também se comprometeu, é alcançar, até 2025, uma taxa de convocatória de 90% dentro da população elegível. Se no caso do cancro da mama, estamos perto de alcançar essa meta (à exceção de LVT), nos outros programas de rastreio isso não se verifica. No cancro do colo do útero, em 2019 só convocámos 51% das mulheres elegíveis. Quanto ao cancro colorretal, convocámos apenas 27% dos elegíveis.

Que leitura faz desses números? São preocupantes?

Estes números preocupam-me imenso porque estamos muito aquém das expectativas, de modo a garantir o acesso equitativo da população a programas de rastreio. Ao não convocarmos a população, estamos a determinar a sua não adesão ao rastreio e a aumentar a carga da doença, sobretudo a mortalidade. Nós sabemos que tanto o cancro da mama, do colo do útero e do colorretal têm manifestadas reduções da mortalidade associada sempre que o programa rastreio é implementado de forma abrangente. Temos uma quantidade de mortalidade totalmente evitável.

Estamos a falar de milhares de por mortes por ano que poderiam ser evitadas?

Sim. No caso do cancro do colo do útero, morrem anualmente cerca de 350 mulheres. Cerca de 80 a 85% destes casos seriam evitáveis se tivéssemos o rastreio a funcionar.

Quais são as piores regiões do país a convocar a população elegíveis para os rastreios oncológicos?

Depende dos programas. No caso do cancro da mama, a região com pior performance é LVT. No cancro do colo do útero, este comportamento é mais difuso – as que têm pior performance são LVT e Algarve, que só convocam 20% das mulheres elegíveis (na zona Centro, os valores estão acima de 80%). Já quanto ao rastreio do cancro colorretal, a região com pior desempenho é o Alentejo (com valores próximos de 10), seguida de LVT, com menos de 10% das pessoas elegíveis a serem convocadas.

Sente que se têm feito esforço para mudar este quadro negativo?

Sim, especialmente na retoma pós-pandemia. Existe também uma estratégia nacional no sentido de dotar de orientações mais claras sobre qual é a população elegível, qual o método de rastreio, como operacionalizar e otimizar a implementação de cada programa de rastreio. É expectável que se verifique uma melhoria no futuro.

Faltam também recursos humanos?

Este é um problema multifatorial. Um dos problemas é a disponibilidade de recursos humanos para fazer os rastreios, seja para fazer o convite seja no acompanhamento de alguma lesão identificada. Por outro lado, existe uma necessidade de alocação de financiamento, isto é, os programas de rastreio têm de ser vistos como mais prioritários, de forma a assegurar uma estrutura de reporte mais robusta e mais avaliação diagnóstica. Temos também de otimizar o sistema de informação de apoio aos rastreios e incentivar a população a aderir aos rastreios.

SO

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