31 Mar, 2021

Obesidade. “Muitas vezes, são tratados os problemas associados, mas não se trata o problema de base”

"Apesar de tudo até estamos [Portugal] no grupo dos países onde a obesidade é um problema menos grave, mas não deixa de ser um problema muito importante, porque tem o risco de afetar mais de metade da população portuguesa, cerca de 6 milhões de pessoas."

Na data em que se assinala o Dia Nacional do Doente com AVC (31 de março), entrevistámos o cirurgião Gil Faria, para perceber a importância da problemática da obesidade em questões de saúde pública, sendo este um dos fatores associados ao surgimento de múltiplas doenças, incluídos doenças súbitas como o acidente vascular cerebral (AVC). Só no ano de 2020, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) encaminhou quase cinco mil doentes através da Via Verde do AVC.

 

  1. Em Portugal, as principais causas de obesidade continuam a ser a alimentação, com défices nutricionais e a falta de exercício físico?

Não existe obesidade sem haver um aporte energético maior do que o gasto, estando este normalmente aliado ao sedentarismo. Embora, por vezes, essa visão tenda a ser um pouco redutora, pois acaba por não ter em consideração os ambientes hormonal e fisiológico, que o organismo humano tem e que leva a que isso aconteça. Mas, fundamentalmente, os motivos serão sempre estes.

 

  1. Que outras características, como por exemplo a genética, estão associadas à obesidade?

Hoje em dia, sabe-se que a obesidade não é uma doença hereditária, ou seja, não é uma doença que se transmita por um gene. Ainda assim, existe claramente uma transição de traços genéticos que levam a que umas pessoas desenvolvam obesidade e outras não.

Faz até algum sentido na evolução humana, que há alguns milhões de anos quando a espécie humana se começou a desenvolver, que os indivíduos que sobreviviam eram aqueles que melhor eram capazes de poupar energia, quando os recursos de comida eram poucos. Durante grande parte da história da humanidade, a comida foi um bem escasso, portante o traço genético da obesidade não se manifestou.

Ainda assim, facilmente percebemos que não é uma doença recente e que tenha surgido no séc. XX. Todos os senhores feudais da idade média, todas as deusas da antiguidade, tudo o que era sinal de algum sucesso era associado à obesidade.

O que acontece é que durante o séc. XX conseguiu-se que haja alimentos disponíveis para uma grande quantidade de pessoa, portanto assistiu-se a um aumento avassalador dos níveis de obesidade.

 

  1. O que é que o facto de termos uma fatia tão grande da população (quase 6 milhões de portugueses) em obesidade ou pré-obesidade representa em termos de saúde pública?

Temos que pensar que o problema não existe só em Portugal. Apesar de tudo até estamos [Portugal] no grupo dos países onde a obesidade é um problema menos grave, mas não deixa de ser um problema muito importante, porque tem o risco de afetar mais de metade da população portuguesa, cerca de 6 milhões de pessoas. Ainda que existam países onde esse número possa chegar a 80% da população. É incomportável termos algum tipo de tratamento disponível para tanta gente, portanto a chave passa obrigatoriamente pela prevenção.

Isto representa que, o tratamento da obesidade e das doenças associadas consome uma grande fatia dos cuidados de saúde disponíveis. Sendo que, muitas vezes, são tratados os problemas associados à obesidade, sem nos preocuparmos em tratar a causa de base. Temos doentes a tratar a sua hipertensão, a diabetes Melittus, o seu AVC, a sua insuficiência renal crónica, a sua apneia do sono, a fazerem cirurgias por causa dos joelhos ou das ancas, e tudo isto consome imensos recursos, mas não trata o problema de base que é a obesidade. Por isso, é necessário libertar certos preconceitos que existem de considerar a obesidade uma doença e, por outro lado, oferecer os tratamentos disponíveis.

 

  1. Qual a distribuição em termos etários de quem sofre de obesidade?

Esta é uma doença relativamente transversal a todas as faixas etárias. De qualquer das formas, temos visto que à medida que as faixas etárias vão sendo mais jovens, vai-se agravando o problema da obesidade.

A obesidade infantil e nos adolescentes é ainda mais prevalente do que a obesidade em adultos, sendo por isso que eu afirmo que é importante conhecermos a obesidade e que a tratemos como um problema de saúde. Numa altura em que se falou tanto de saúde pública – durante o ano de 2020 e início de 2021 – é importante as pessoas perceberem que sem uma saúde pública decente, é muito complicado termos uma sociedade saudável.

 

  1. Quais os comportamentos a adotar?

Devem existir centros especializados no tratamento da obesidade. Evoluiu-se bastante no tratamento cirúrgico da obesidade, com a constituição de centros de tratamento cirúrgico, mas isso não é suficiente para tratar este problema a nível populacional.

É preciso analisar que a cirurgia bariátrica ou metabólica já exige um tratamento multidisciplinar. E que cerca de 80-90% das pessoas com excesso de peso/obesidade têm indicação para tratamento cirúrgico, sendo esta cirurgia indicada no tratamento de casos mais graves, mas a grande maioria da população não tem indicação para este tipo de tratamentos. A restante parte da população tem, em contrapartida, um enorme benefício noutro tipo de intervenções comportamentais, bem como na manutenção de exercício físico.

Neste momento é preciso observar o problema da obesidade, não só como um problema dos cuidados de saúde, mas como um problema social como um todo.

Outro aspeto que acho que é muito importante, é acabarmos com a ideia de culpabilização: de tentar esconder os obesos num quarto fechado dentro de casa. As pessoas são muitas vezes ostracizadas pela sociedade, têm um maior risco de depressão, de isolamento social, maior dificuldade em arranjar emprego e, se não agirmos rapidamente, vamos continuar a alimentar este ciclo vicioso.

 

  1. De que forma é que a cirurgia bariátrica atua no tratamento da obesidade?

A cirurgia bariátrica ou metabólica é uma cirurgia que vai atuar na alteração do funcionamento do metabolismo do organismo. Por um lado, reduzindo o apetite da pessoa permitindo-lhe comer menos volume de comida, mas, acima de tudo, vai provocar uma alteração do perfil hormonal do organismo, fazendo com que o organismo deixe de contrariar a perda de peso.

Todas as pessoas que já tentaram iniciar uma dieta sabem que é relativamente fácil perder os primeiros 2-3Kg, o que é difícil é manter essa perda de peso constante, ao longo do tempo. Isto acontece, porque de facto existe uma adaptação metabólica do organismo; há medida que prosseguimos com uma dieta, o nosso organismo vai reduzir o consumo energético, para poder sobreviver e manter as suas reservas no mesmo nível, com menos energia disponível. Há, portanto, aqui uma tentativa ativa do organismo contrariar a perda de peso.

Com este tipo de cirurgia conseguimos, com base num apoio multidisciplinar, pois a cirurgia não funciona por si só, fazer com que de alguma forma o organismo deixe de contrariar esta resistência à perda de peso, num equilíbrio e num peso mais baixo.

Hoje em dia, estas cirurgias são cirurgias extraordinariamente seguras feitas por laparoscopia – técnicas pouco invasivas – e têm uma recuperação relativamente rápida, com um tempo de internamento curto.

Nas nossas guideline o fator que é utilizado é o Índice de Massa Corporal (IMC), sendo este a relação entre o peso e a altura. Este tipo de cirurgia é reservado para pessoas com um IMC superior a 40, ou superior a 35 quando associado a outras doenças. Mas na maioria das sociedades científicas internacionais começa-se, atualmente, a discutir a possibilidade de reduzir esta indicação para um IMC superior a 30, porque de facto está provado que a partir deste valor, já existe uma associação à doença e à morte prematura, justificando-se, por isso, oferecer também a estes doentes a possibilidade de serem submetidos a um sistema seguro, do ponto de vista da sua saúde, e duradouro, tendo em conta os resultados que se consegue obter a longo prazo.

 

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