11 Fev, 2022

Medicina da Dor. “Nunca nos podemos esquecer que a avaliação da dor é muito mais do que perguntar ‘onde e quanto é que lhe dói?’”.

Decorre nos dias 27 e 28 de maio o ASTOR 2022 – 29º Congresso de Medicina da Dor. Em entrevista exclusiva ao SaúdeOnline, o especialista em Anestesiologia e Medicina da Dor Javier Durán aponta os principais tópicos em debate no congresso e descreve os grandes desafios que a Medicina da Dor enfrenta atualmente em Portugal.

Quais as temáticas em destaque nesta edição do ASTOR?

Está a ser muito desafiante – uma verdadeira odisseia! – a organização deste congresso. Habitualmente deveria ter ocorrido no último fim de semana de janeiro, mas estando a pandemia no seu pior pico, optámos por adiá-lo. No primeiro dia, quinta-feira, teremos o curso EcoASTORX, que geralmente é realizado na véspera do congresso, muito focado na intervenção em dor.

Sendo que a cada ano nos temos focado numa região anatómica ou num tema em especial, este ano vamos falar sobretudo de dor no membro inferior. Decidimos, em vez de organizar algo muito diferenciado e dirigido apenas a um pequeno leque de especialistas, pegar em exemplos de doentes de Medicina da Dor com dor no membro inferior nas suas formas mais elementares, de modo a ir aumentando a complexidade das abordagens ao longo dos três dias de congresso. Queremos uma visão de congresso para qualquer médico interessado no tratamento da dor crónica, sem a necessidade de ter de se ser perito na área.

O nosso congresso costuma ter uma abordagem um pouco diferente dos outros congressos médicos, pois apresenta uma visão de soluções para além da ciência pura. Neste ano vamos aflorar, por exemplo, a influência da musicoterapia e do cinema na evolução destes doentes, havendo ainda outras surpresas garantidas.

Na sua visão, qual o panorama atual da Medicina da Dor em Portugal?

A Medicina da Dor é uma competência muito extensa, na qual sinto que por vezes não conseguimos chegar a todo o lado, de tão inabarcável que é. Estamos a transformarmo-nos aos poucos e isso torna-nos mais sábios, pois se compararmos o passado com o atual momento que vivemos, sinto que estamos a seguir uma boa direção. Tal facto deve-se à cada vez mais presente multidisciplinaridade, pois só traz benefícios trabalharmos em conjunto e abrirmo-nos a outras especialidades – desde médicos fisiatras a internistas – bem como a outros profissionais de saúde, como psicólogos ou psicomotricistas.

Isto permite que a visão que temos do doente seja mais detalhada e consigamos chegar onde noutros tempos não chegávamos com uma visão muito mais restrita e limitada, por partirmos de uma área muito especializada que é a Anestesia.

Qual o impacto da pandemia de covid-19 nos cuidados ao doente com dor crónica e aguda?

Desde o primeiro dia de pandemia que as unidades de dor praticamente pararam, mantendo-se apenas um funcionamento residual. Não parámos completamente porque havia doentes em tratamentos com opioides que precisavam da prescrição médica, bem como de ajustes em casos de crise de dor severa. Emergências existiram poucas, mas em contrapartida tivemos situações urgentes para tratar, bem como acompanhar doentes que estavam internados nos hospitais com dores severas. Os restantes doentes sofreram imenso porque o número de consultas e os procedimentos terapêuticos diminuíram imenso, tendo sido, de um modo geral, o panorama a nível nacional.

No caso do Hospital Garcia de Orta, por exemplo, em período anterior à pandemia tínhamos tempos de espera para alguns procedimentos de uma ou duas semanas, e neste momento já não se fala em semanas, mas sim em meses. Porém, em contrapartida, devo dizer que, apesar de estarmos no pior momento relativamente ao número de casos [positivos de infeção pelo SARS-CoV-2], ultimamente a atividade está a ser recuperada de uma maneira fantástica e nas últimas semanas temos tido uma atividade muito superior ao pré-pandemia.

Considera que a inovação terapêutica tem conseguido acompanhar as necessidades destes doentes?

Vamos no bom caminho, mas infelizmente ainda estamos muito longe de estar no topo. A Medicina da Dor precisa muito de recursos e, em termos gerais, não os temos. Há terapias que são muito promissoras, tendo resultados muito bons em mais de metade dos doentes – nomeadamente nos piores cenários de dores refratárias, que não respondem a outros tratamentos conservadores –, mas que em muitos hospitais não conseguem ser implementadas por serem dispendiosas. Refiro-me a técnicas de neuro-modelação que rondam os 10 mil a 20 mil euros e claro que não é qualquer sistema de saúde que não consegue suportar este tipo de tratamentos. Mas, quando olhamos a longo prazo, estas técnicas são vantajosas também do ponto de vista económico, pois as despesas referentes aos doentes com dor crónica mal controladas são elevadíssimas, nomeadamente no que respeita a números de consultas, procedimentos, fármacos prescritos ou idas às urgências.

Entende que essas alterações passam por uma mudança de paradigma na forma de prestação de cuidados no SNS?

Entendo que seja muito difícil acreditar que vale a pena investir milhares de euros num tratamento que não garante que o doente vá melhorar, mas, também não tenho dúvidas de que se se estudasse a fundo a relação custo/benefício, se perceberia que de um ponto de vista de rentabilidade efetivamente vale a pena.

Quando se pensa com essa visão, a longo prazo, toda a gente entende que vale a pena e que temos de melhorar a vida destas pessoas.  Acho que temos, sobretudo, de ter essa mentalidade de longo prazo, mas como nem todos os cargos de responsabilidade e de decisão política duram muitos anos, é difícil criar estratégias com vista, por exemplo, a 10 anos.

Entre outros fatores, o custo que a Medicina da Dor tem é elevadíssimo porque é uma das principais causas de baixa laboral e, ainda por cima, tem um impacto brutal, quer nas famílias, quer nas empresas onde estes doentes trabalham. Também os recursos consumidos por estes doentes ao longo dos anos são tremendos. Temos de investir mais e melhor.

Para onde caminhamos relativamente a tendências na competência de Medicina da dor e no estado de arte da terapêutica da dor crónica?

Espero que em termos gerais a dor alcance maior visibilidade. Muita gente, principalmente doentes, não sabe que existem unidades de dor e que existe uma área chamada Medicina da Dor, por isso esse “marketing” de divulgação da competência é o passo principal.

Simultaneamente, está a haver alguma novidade ao nível da terapêutica da dor, com recurso aos canabinoides, que entraram há cerca de um ano no mercado português. Estes têm indicação para alguns tipos de dor – como é a dor neuropática central, a dor neuropática periférica, a dor oncológica e outras dores em alguns casos muito pontuais –, mas temos ainda relativamente pouca experiência, pois estão a ser administrados há apenas um ano, e nem sequer são usados como terapêutica de primeira linha. Ainda assim, acho que é muito importante no futuro termos recurso a outras armas terapêuticas.

A dor é, de facto, um mundo enorme, cheio de emoções e alterações orgânicas claras e outras não tão claras, por isso temos de analisar qual é o contexto cultural, o contexto familiar e a situação laboral da pessoa que sofre de dor. Nunca nos podemos esquecer que a avaliação da dor é muito mais do que perguntar “onde e quanto é que lhe dói?”.

SO

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