Literacia nas redes: Qual o papel do médico no séc. XXI?

Em matérias de literacia em saúde, o pediatra Hugo Rodrigues e o psiquiatra Gustavo Jesus defendem a mesma posição: "as pessoas nunca tiveram acesso a tanta informação, mas ao mesmo tempo que nunca estiveram tão desinformadas como agora, no sentido de fazerem observações absurdas”.

O psiquiatra Gustavo Jesus e o pediatra Hugo Rodrigues têm em comum uma presença ativa nas redes sociais, com a partilha de conteúdos/informação em Saúde, com o objetivo, em última instância, de fomentar a literacia da população nesta área. A este respeito, ambos defendem uma adaptação da linguagem utilizada na transmissão das mensagens, bem como a procura por fontes credíveis, numa era tomada pela comunicação digital, onde a publicação de informações não baseadas em factos científicos está à distância de um clique.

 

“O estado da literacia em saúde está, atualmente, na melhor das hipóteses, no nível médio”. Quem o diz é o pediatra da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, Hugo Rodrigues, apontando uma vasta falta de conhecimento por parte da sociedade sobre questões básicas de saúde, relativamente a sintomas simples como febre e/ou tosse em crianças, ou até mesmo sobre patologias altamente prevalentes na idade adulta, como é o caso da hipertensão arterial.

“As pessoas têm dificuldade em perceber como devem agir perante vários sintomas, ainda que eu ache que a dificuldade-base em termos de literacia em saúde não assenta apenas no fator informação. Existe uma dificuldade clara de gestão das múltiplas informações que as pessoas recebem”.

O pediatra defende que enfrentamos atualmente o período de maior divulgação de conteúdos da história da humanidade, mas que ainda assim a população nunca esteve tão pouco esclarecida e elucidada sobre várias temáticas de saúde. “Há muita informação disponível na Internet e acho que a maior dificuldade, atualmente, é ajudar as pessoas nesse processo de seleção da informação, que se traduza em algo útil para as suas vidas”.

O psiquiatra e diretor clínico do PIN (Partners in Neuroscience), Gustavo Jesus, defende exatamente a mesma premissa. “Considero que as pessoas nunca tiveram acesso a tanta informação, mas ao mesmo tempo que nunca estiveram tão desinformadas como agora, no sentido de fazerem observações absurdas”.

 

O objetivo destes canais digitais não é substituir as consultas médicas

Hugo Rodrigues

 

No entender deste especialista, as lacunas existentes no campo da literacia em saúde, sobretudo na especialidade de Psiquiatria, são ainda muito visíveis. “Os fármacos que utilizamos atualmente são relativamente recentes, maioritariamente dos anos 60, sendo que anteriormente ainda não existia uma medicação adequada e as pessoas eram isoladas e não dispunham de qualquer tipo de tratamento. A Psiquiatria era sobretudo associada a pessoas que não estavam bem da cabeça e eram apelidadas de malucas, sendo uma ideia errada que as pessoas ainda têm na atualidade”.

Esta “série de conceitos completamente errados e preconceituosos sobre o que é a doença mental e sobre o que são os tratamentos psiquiátricos” traduz-se, segundo o médico, num estigma da sociedade que seguidamente instiga um estigma na própria pessoa face à sua condição, levando a que “muitas não queiram aceitar a doença, nem sequer o tratamento”.

Segundo o professor assistente convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), a “depressão é, neste momento a principal causa de incapacidade para o trabalho, sendo por isso uma doença que causa imensos problemas não só a nível não só psicológico, como também médico agrava o prognóstico das outras doenças, aumentando a perda da qualidade de vida. Estas podem, em última instância, resultar em suicídio. Portanto, perante uma situação que tem tantas consequências potencialmente negativas, é tão importante que a literacia em saúde seja uma constante cada vez maior na nossa sociedade”.

 

Comunicação clara e credível

Hugo Rodrigues aponta a quantidade de informação disponível e a clareza das mensagens transmitidas como os principais aspetos para uma eficiente literacia em saúde. “A autonomia [dos pais] tem vindo a diminuir devido à grande quantidade de informação disponível e ao medo de falhar. Os pais ficam na dúvida sobre como devem agir, até mesmo em situações aparentemente simples, mas também, em parte, devido ao facto de a comunicação médica não ser, por vezes, completamente assertiva”, refere.

Para o pediatra, a informação deve ter sempre o fator atualidade, do ponto de vista científico, tendo ainda de ser filtrada para ser acessível a todos. “Os profissionais de saúde têm de saber traduzir a informação para uma linguagem que seja acessível a todos e, por fim, tentar que a informação científica não seja enfadonha, de modo a poder cativar as pessoas a lê-la e ficarem esclarecidas”.

Em suma, sublinha, “acho que existem dois problemas-chave na literacia em saúde: considero que temos imensa informação disponível, mas as fontes podem não ser fidedignas. E mesmo que estas sejam credíveis, pode haver um problema na passagem da comunicação, que tem de utilizar uma linguagem acessível e adaptada ao público-alvo”, acrescenta.

Gustavo Jesus partilha desta opinião, defendendo que a maior facilidade na divulgação de conteúdos, provocada pela evolução tecnológica, facilita a difusão de informações corretas, bem como de informações sem qualquer base científica, tornado o processo de filtragem por parte dos destinatários mais difícil e moroso.

“Muitas vezes, as pessoas não têm a capacidade para determinar a validade de certa informação, e outras vezes tendem a selecionar a informação que vai alimentar aquilo em que elas já acreditam. Existe um fenómeno psicológico muito interessante denominado por efeito de Dunning–Kruger, que diz que quanto maior a ignorância de uma pessoa sobre um tema, maior é a convicção e a certeza com que ela fala sobre esse tema. Vemos isso no nosso próprio dia a dia: quando uma pessoa sabe muito e continua a investigar sobre um certo tema, está constantemente a colocar dúvidas novas; pelo contrário, quando a pessoa detém conhecimento, vai continuar a defender o que acha que está certo com muita convicção. E tudo isto contribui para esta desinformação”, destaca o psiquiatra.

 

A linguagem da tutela

Quando questionado sobre o papel do Ministério da Saúde e da Direção-Geral da Saúde (DGS) na promoção da literacia em saúde em Portugal, o autor do blogue Pediatria Para Todos considera que estes apresentam iniciativa na divulgação de conteúdos, mas que, ainda assim, a comunicação apresenta algumas falhas.

“Acho que a DGS e a Sociedade Portuguesa de Pediatria têm uma comunicação adequada, mas que não está a ser eficaz. Há vontade de utilizar os canais e ferramentas digitais, mas ainda não há um bom domínio das redes para o vasto alcance que estas entidades detêm”, avança o clínico.

Nesse sentido, Gustavo Jesus acrescenta que o principal foco das comunicações da tutela deve incidir na criação de planos de literacia, que sejam cada vez mais amplos em termos de linguagem e abrangência. “Os planos de literacia em saúde são tanto mais eficazes quanto mais faixas etárias consigam abranger, ainda que devam sempre ser pensados e adaptados especificamente a certos grupos etários e faixas sociais”, sustenta o psiquiatra.

 

Os influencers deviam ter maior responsabilidade naquilo que dizem, especialmente em questões de saúde pública.

Gustavo Jesus

 

O médico nas redes sociais

Além do site criado em 2011 com o objetivo de dar resposta a dúvida sobre as idades pediátricas, Hugo Rodrigues é também ativo nas redes sociais como o Facebook, Instagram e, mais recentemente, no TikTok.

“O objetivo destes canais digitais não é substituir as consultas médicas, mas com essa informação permitir que as pessoas possam aprender e estar mais seguros sobre como reagir em situações específicas”, esclarece o pediatra, que adianta que os adolescentes mais velhos e adultos jovens são o principal alvo das suas comunicações, “tendo em conta que são estes que vão ter filhos dentro em breve e, por isso, devem dominar estes temas”.

“Sempre senti como um dever, enquanto médico, a partilha de conhecimento e de informações credíveis. O blog, que depois foi convertido em site, bem como as redes sociais surgiram nesse seguimento, até porque nunca tenha fiz nenhuma formação em comunicação digital – tudo o que aprendi foi de forma empírica, através de tentativa erro”, acrescenta o médico.

Também o psiquiatra Gustavo Jesus, especialmente ativo na sua conta de Instagram, onde faz habituais esclarecimentos sobre saúde mental, revela a importância destas ferramentas, chamando à atenção de quem as usa para responsabilidade social.

“Os influencers deviam ter maior responsabilidade naquilo que dizem, especialmente em questões de saúde pública. Não podem limitar-se a dizer as coisas que pensam, confundindo as suas opiniões com factos comprovados. O grave problema atualmente é haver muita gente a falar sobre saúde mental sem perceber nada de saúde mental, nem de doenças mentais, pondo em risco a saúde das pessoas que as veem, ouvem e seguem”, esclarece.

“Isto resulta num grave problema, quando as pessoas não percebem a diferença entre a opinião de uma figura pública e a validade científica do que ela está a publicar. Acho que os médicos devem, por isso, estar no mesmo local onde esta desinformação circula, pois é a nossa oportunidade de contrariar toda a desinformação que está a ser difundida, por pessoas que não a têm”, conclui.

SO

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