Hepatite C. “É necessário tratar pelo menos três mil doentes por ano”
Segundo o especialista em Infecciologia, Fernando Maltez, "Para atingirmos, até 2030, os objetivos a que nos propusemos, e partindo destes números que citei, é necessário tratar pelo menos 2900 a três mil doentes por ano".
Portugal foi um dos países pioneiros a garantir o acesso universal à nova medicação para a hepatite C, facto que aconteceu em 2015. Desde então, temos tratado um número substancial de doentes anualmente.
Ainda assim, a maior adversidade persiste na carência de dados epidemiológicos. A sua inexistência não nos permite saber qual o número preciso de doentes que ainda estão por trata. Admitimos que neste momento existam, em Portugal, entre 40 a 45 mil pessoas por tratar no que se refere à hepatite C, sendo que não temos qualquer estimativa de como é que estas pessoas se distribuem, quer a nível de género bem como de faixas etárias.
Em 2007 foi assinado um manifesto em Bruxelas, no que se refere à hepatite C, no qual acordámos atingir várias metas até 2030. Os principais objetivos passam por termos 90% das infeções diagnosticadas, sendo que pretendíamos que 80% dessas infeções diagnosticadas fossem tratadas. Devia ainda haver uma redução de 90% no número de novas infeções, bem como uma redução da mortalidade em 65%. É certo que estas são metas que nos fazem “pôr pernas ao caminho”, de modo a acelerarmos os diagnósticos e ainda mais os tratamentos.
Para atingirmos, até 2030, os objetivos a que nos propusemos, e partindo destes números que citei, é necessário tratar pelo menos 2900 a três mil doentes por ano.
Implementação da testagem
Estamos, neste momento, a atravessar uma fase pandémica, que impede a melhoria dos procedimentos em várias áreas da saúde, sobretudo em áreas não-covid. A hepatite C claramente não foge à regra e o acesso destes doentes à testagem está, neste momento, mais dificultado. Para já, resta-nos esperar que a pandemia não tenha um impacto muito significativo nos procedimentos que se pretende implementar, e que estes também passem por um rastreio mais alargado.
Do meu ponto de vista, não temos um plano de testagem bem definido a nível nacional. Este tem de basear-se num rastreio universal, mais precisamente num plano de macro eliminação, que até pode ser centrado. Pode ser dividido, por exemplo, em faixas etárias começando nas pessoas cujas idades se concentram dos 80 aos 90 anos; depois dos 70 aos 80 anos, e assim sucessivamente.
É sobretudo necessária a criação de um rastreio universal de macro eliminação, que depois até pode vir a ser complementado com um rastreio de micro eliminação. Por este segundo entender-se-ia a uma intensificação dos grupos populacionais de maior prevalência, como são os utilizadores de drogas intravenosas, os reclusos, os homens que praticam sexo com homens… Por exemplo, os migrantes têm muita dificuldade no acesso aos cuidados de saúde, pelo estigma, pela discriminação, por não estarem legalizados e por isso devidamente inscritos no Serviço Nacional de Saúde, portanto há aqui alguma dificuldade de acesso deste grupo populacional.
Este plano de micro eliminação deveria ainda ser conjugado com outras medidas de instrução, como um plano de educação e formação da população e dos próprios infetados.
É necessário um envolvimento generalizado do Serviço Nacional de Saúde (SNS), dos hospitais e a própria realização do rastreio em consultas. Para fazer-se esse rastreio é necessário também envolver os centros de saúde, bem como é importante o apoio das Organizações Não-Governamentais (ONG), porque estão muito mais próximos de alguns destes grupos populacionais.
Acesso à medicação
Hoje em dia, quando solicitamos a medicação, temos ainda um longo tempo de espera antes que o medicamento nos chegue. Isto não faz qualquer sentido, pois se eu tiver um doente infetado por VIH prescrevo-lhe a medicação e no próprio dia o doente vai aviar a terapêutica à farmácia. Desta forma, não há um motivo lógico para que quando queremos tratar uma hepatite C o processo seja diferente e tenhamos de esperar algum tempo até que a medicação seja aprovada.
Assim, é percetível que existem ainda obstáculos de ordem burocrática e administrativa que não fazem qualquer sentido. Mas, para a sua alteração, é necessário que haja também alguma vontade e prioridade política.
Por fim, considero que é fundamental que se minimize ao máximo o estigma e a discriminação destes doentes, de modo a facilitar também o seu acesso aos cuidados de saúde.
DT
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