Entrevista. “O que nos esmaga é a dor musculoesquelética”

Com uma vida profissional dedicada ao tratamento da dor crónica, a médica anestesista fundou há quase 30 anos a consulta de dor do Hospital Garcia de Orta.

Hoje, o Centro Multidisciplinar de Dor Crónica da unidade hospitalar tem o seu nome. Já aposentada, continua a trabalhar lá e explica como é feito o acompanhamento dos doentes nas unidades de cor crónica dos hospitais generalistas, que continuam assoberbadas de doentes com dor musculoesquelética.

Qual é o trabalho realizado pelas unidades de dor crónica nos hospitais?

O nosso trabalho é acompanhar doentes exclusivamente referenciados por médicos que podem ser do próprio hospital, de outros hospitais, de centros de saúde, ou de outras unidades fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS), desde que o doente faça parte do SNS. Objetivamente a nossa atividade centra-se em ver patologias com dor crónica − oncológica e não oncológica − de uma maneira geral de todos os grupos etários e são-nos referenciados doentes que são não-respondedores às terapêuticas de primeira linha e segunda linha, consideradas mais convencionais nos protocolos internacionais. Os nossos serviços, além de oferecerem terapêuticas, podem auxiliar quando há dificuldades de diagnóstico, porque há situações álgicas, dolorosas para as quais é difícil estabelecer um diagnóstico. As terapêuticas que temos para oferecer dependem de unidade para unidade. Quanto mais diferenciada for uma unidade, mais respostas terapêuticas terá para oferecer.

Que patologias são mais predominantes nos doentes que seguem nestas unidades especializadas?

As consultas de dor crónica nos institutos portugueses de oncologia dedicam-se quase exclusivamente à dor oncológica, embora não possamos esquecer que cerca de 15% dos doentes oncológicos sofrem de dor não-oncológica.  Já nos hospitais generalistas é diferente. Por exemplo, na unidade do Hospital Garcia da Orta seguimos na consulta de dor crónica 200 e tal doentes oncológicos, mas temos mil e tal doentes não-oncológicos.  Dentro das patologias não-oncológicas que seguimos, as mais predominantes são as musculoesqueléticas, que com a população a envelhecer são cada vez mais prementes, e temos também a dor neuropática e a dor nociplástica, como a fibromialgia a cistite intersticial. Mas o que nos esmaga é a dor musculosquelética e, em primeiro lugar, a lombalgia. É uma patologia que podia ser muito melhor tratada e, sobretudo, evitada com um posicionamento correto. Há algumas questões anatómicas e traumáticas que podem estar na origem destes casos, mas há muita situação adquirida por posicionamento viciosos, como sentar mal, dormir mal e andar mal.

E que tipo de respostas conseguem oferecer aos doentes?

Estabelece-se um plano terapêutico integrado que é adaptado caso a caso. Qualquer que seja a causa da dor, esta pode ser resolvida com fármacos, ou com fármacos e um procedimento, outros só com um procedimento. Um dos principais problemas com que lidamos é o peso. Se metade dos nossos doentes que sofre de lombalgias emagrecesse não precisava de nós. Há erros alimentares, posturais, hábitos viciosos e, como a iliteracia na saúde é muito elevada, as pessoas não aceitam muito bem que parte do tratamento passe pela perda de peso e pelo exercício físico. São hábitos difíceis de alterar.

Em termos de respostas farmacológicas, a inovação tem chegado a esta área de tratamento? Os mitos sobre esta medicação ainda persistem?

Sim, há os mitos com os opioides, com substâncias canabinoides medicinais e até com a acupuntura ou a ozonoterapia. Nenhuma terapêutica é panaceia geral para tudo. Há dores que não se tratam com opioides, como a dor neuropática. Os mitos são sempre baseados na falta de esclarecimento, embora Portugal sempre tenha tido uma cultura opiofóbica. Mas temos vindo a melhorar, com profissionais de saúde mais esclarecidos, até porque as regras de prescrição, manutenção e suspensão de um opioide estão publicadas, são perfeitamente conhecidas e se forem seguidas tudo corre bem.

Neste momento o leque terapêutico disponível já consegue garantir aos doentes um controlo da dor e uma melhoria da qualidade de vida?

À esmagadora maioria dos doentes já, com acesso a uma panóplia grande de opções terapêuticas. Mas ainda subsiste um pequeno nicho de doentes, cada vez menor, a que damos o nome de “dor intratável”, que são situações muito específicas e muito raras.

E quais são os maiores desafios no tratamento da dor crónica?

Creio que a política de saúde de não dar prioridade à importância de tratar a dor crónica. A dor crónica custa muito dinheiro, nomeadamente nos custos indiretos nos regimes trabalho, nas baixas e nas limitações de trabalho, mais uma vez com a lombalgia a ser a causa principal de baixas.  Os decisores políticos precisam de priorizar esta área porque há mais gente com dor crónica em Portugal do que com diabetes. No nosso país, a dor crónica só é ultrapassada pela hipertensão. Já houve ministérios que investiram imenso na dor crónica em Portugal, mas desde 2011 que o investimento tem sido muito baixo. Muitas das unidades de dor estão dependentes de outros serviços, nomeadamente de Anestesiologia, e isso traduz-se em situações em que se houver falta de um anestesista no bloco operatório vai-se buscar um à unidade de dor, ficando os doentes por tratar.
O desafio maior agora é o recrutamento de pessoas habilitadas para as unidades hospitalares de dor crónica, com competência em Medicina da Dor, e dedicadas a unidade para dar resposta adequada às necessidades.

E como é a cobertura nacional das unidades de dor crónica hospitalar?

Como em tudo na área da saúde, a assimetria é total. A esmagadora maioria das unidades estão o litoral. No interior também há, mas está muito mais a descoberto.

Como tem sido tratar a dor crónica em Portugal em tempos de pandemia pelo novo coronavírus?

Na nossa unidade está a ser muito complicado. Na vertente dos doentes, muitos têm medo de ir ao hospital pelo risco potencial de serem infetados, apesar de explicarmos que o hospital é, talvez, dos sítios mais seguros, com circuitos muito bem definidos.  Nós já trabalhávamos muito com o teletrabalho, ou seja, com acompanhamento por telefone, mas agora a utilização é maior. Depois, a nossa própria unidade foi deslocalizada por causa dos circuitos Covid-19 no hospital e agora estamos num espaço que não responde às necessidades dos doentes, nem dos profissionais. Mas em tempos e guerra não se limpam armas e fazemos das tripas coração para dar a melhor resposta aos doentes. Contudo, é notório que a pandemia tem um impacto brutal nos doentes com dor crónica – na acessibilidade e no medo – e nos profissionais, porque a questão logística ou de recursos humanos podem estar comprometidos, pois estão a ser solicitados para outros fins.

E notaram uma diminuição da referenciação de novos doentes para a consulta de dor crónica desde que foi decretada a pandemia?

Sim, uma diminuição ligeira. Agora a prioridade é a Covid-19. Parece que já temos um alerta de que não se pode passar para segunda linha situações que são tão graves como a Covid-19, pois algumas têm uma moralidade e mortalidade muito superior à causada pela Covid-19.

RV/SO

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