15 Nov, 2024

“É necessário consolidar o modelo organizativo e substantivo legal das unidades de cuidados na comunidade”

José Barbosa Lima, presidente da Associação de Unidades de Cuidados na Comunidade (AUCC), defende a passagem do Despacho 10143/2009 de 16 de abril para Decreto-Lei, para que as UCC sejam mais valorizadas e apela à assinatura de uma petição no site da Assembleia da República.

Por que razão a Associação das Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC) defende a passagem do Despacho 10143/2009 de 16 de abril para Decreto-Lei?

Existe uma necessidade imperiosa de revisão do Despacho 10143/2009 e transição para Decreto-Lei (DL), em primeiro lugar, porque se passaram 15 anos e diversas transformações quer na organização dos cuidados de saúde, quer nas necessidades de saúde da população. Depois, é necessário consolidar o modelo organizativo e substantivo legal das UCC, balizando a carteira de serviços no contexto da integração de cuidados e a edificação de um modelo remuneratório baseado no desempenho. Estes aspetos são fundamentais para trazer equidade aos profissionais de saúde dos cuidados de saúde primários que trabalham em diferentes unidades, mas que, em última análise, têm objetivos comuns. Esta nossa reivindicação tem sido partilhada em reuniões com a atual Direção Executiva do SNS, com o Ministério da Saúde, com a Assembleia da República e os Grupos Parlamentares, mas ainda não houve resolução.

Apresentámos uma proposta concreta à tutela que estimulará uma perspetiva de contratualização moderna, baseada no itinerário clínico do utente e na aquisição de ganhos em saúde. Nesse sentido, a AUCC lançou, no site da Assembleia da República, uma petição pública que a população pode assinar para transformar o despacho em DL. Pretendemos assim levar esta questão à discussão pública e desta forma contribuir para o desenvolvimento das UCC em Portugal. Atualmente existem 288 UCC constituídas por aproximadamente 3291 profissionais.

O índice desempenho global médio das UCC no final de 2022 foi de 75,25, superior ao das extintas USF-A. Temos sete unidades com certificação ACSA, pelo que a quantidade e qualidade dos cuidados prestados é inegável. Garantimos diariamente, na casa dos utentes, 5776 vagas da RNCCI. Fica claro que para além de tudo o que já referi, o DL incrementaria a possibilidade de termos ainda dotações seguras e uma harmonização da carteira de serviços.

Que impacto tem tido a generalização das ULS no trabalho das UCC?

A coexistência do modelo ULS e UCC não é de agora. Este histórico existe e carece ser analisado, percebendo os aspetos positivos e negativos dessa coexistência. Diria que o principal impacto está relacionado com a incerteza inerente aos tempos de mudança: em muitos locais ainda estamos a ver como as peças encaixam e isso leva tempo. Não podemos também esquecer que esta generalização pode acontecer a diversas velocidades, dado que os contextos das ULS são todos diferentes e uns mais desafiantes que outros.

As ULS podem potenciar a integração de cuidados, valorizando o percurso clínico dos utentes e a sua necessária interligação com os serviços de saúde e também com as entidades comunitárias. É neste sector que as UCC, enquanto equipas multidisciplinares implementadas na comunidade que servem, são fundamentais na prestação de cuidados de saúde e apoio psicológico e social, de âmbito domiciliário e comunitário, especialmente às pessoas, famílias e grupos mais vulneráveis, em situação de maior risco, dependência física e funcional ou doença que requeira acompanhamento em proximidade.

Precisamos de acreditar que vale a pena trabalhar no SNS. Carecemos de melhorar a articulação e combater os problemas de saúde das comunidades, com medidas que permitam colmatar disparidades quer sociais, quer económicas e geográficas.  O futuro do SNS só será interessante se decorrer de processos participados de transformação adaptativa às atuais e futuras circunstâncias. Falamos de proximidade! Continuo a acreditar que o melhor trabalho que se faz nos CSP é fora do centro de saúde (CS). Há que revisitar o CS: transformá-lo em arquipélago e não ilhas.  As UCC estão na vanguarda dos CSP, porque a intervenção especializada na comunidade é, cada vez mais, a grande prioridade e precisamos de Sistemas Locais de Saúde, que estão previstos na lei.

 

Receia que as UCC fiquem na sombra, já que se fala mais em hospitais e unidades de saúde familiar?

Pode considerar-se que as UCC fazem um trabalho invisível, dado que, por norma, não atraímos o foco dos media. Mas somos peça fundamental. Fazendo uma comparação: quando vamos na estrada, somos atraídos pelo carro mais caro, potente e vistoso… mas esse carro não funciona se não tiver combustível ou eletricidade. Mas já pensou que isso não se vê? O SNS tem de ser ajustado às necessidades da população e, para tal, temos de ter foco na promoção da saúde e na prevenção da doença, mas também na gestão e controlo da mesma. Isto obriga a uma maior articulação entre as pessoas e as equipas, procurando uma verdadeira interligação de cuidados para que as pessoas em particular, e as comunidades em geral, possam ter acesso oportuno aos melhores cuidados de saúde possíveis.

As UCC agregam a visão interdisciplinar e integrada dos cuidados de saúde ao longo do ciclo de vida, com foco nas populações vulneráveis, algo que é essencial perante as atuais necessidades sociais e de saúde. Assim, reduzir a imagem dos CSP às USF não corresponde à verdade, nem às necessidades encontradas no terreno. Utilizando a minha comparação inicial: é um carro vistoso que não funciona sozinho.

Somos a favor de uma pluralidade de análise e discussão que olhe para os cuidados como produto de diversos atores, cujo interesse máximo é a prestação integrada e de qualidade voltados para a inequívoca atenuação das necessidades da população. A pandemia veio provar, de forma inequívoca, que os CSP são constituídos por uma pluralidade de respostas que são necessárias, efetivas e significativas.

Persistir nos erros do passado irá contribuir para um maior desagrado e à saída dos recursos humanos maioritariamente diferenciados, das UCC para os CRI e/ou USF, pondo em risco a prestação de cuidados que durante anos, sempre foi assegurada à população mais vulnerável: desde as grávidas, as puérperas, as crianças e jovens com necessidades de saúde especiais, comunidade escolar, as pessoas beneficiárias de rendimento social de inserção, cuidadores e pessoas com dependência física e mental, clientes com doença crónica, entre outros.

O que se pode esperar do futuro das UCC?

Podemos esperar, acima de tudo, compromisso com as populações que servimos. As UCC são únicas nos cuidados de proximidade às pessoas, grupos e comunidades mais vulneráveis. No momento atual, são as unidades de referência para promover o acesso das comunidades e pessoas aos cuidados de que precisam.

O último estudo realizado pela AUCC identifica que ainda temos recursos humanos e recursos materiais insuficientes, mas a abrangência de praticamente todo o território nacional, a média de índice de desempenho global e a adoção de práticas promotoras de qualidade que são certificadas e reconhecidas pela Direção-Geral de Saúde dão-nos esperança de que estamos no caminho certo. Caso a tutela se reveja nesta visão e necessidade e invista inequivocamente no reforço das UCC, através da publicação do DL e do modelo remuneratório e alocação de recursos em número suficiente, o futuro será sustentado. Estes aspetos estarão em discussão alargada com as ordens e associações profissionais no 6.º congresso da AUCC, a realizar em 20 e 21 de março de 2025, no Multiusos de Gondomar.

 

MJG

 

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