2 Mar, 2018

Doentes queixam-se de atrasos no acesso à medicação para a Hepatite C

Associações dos doentes falam em casos de atraso no acesso aos medicamentos. As regras de financiamento para a compra da medicação mudaram no início do ano: a compra é feita pelo Ministério da Saúde mas o pagamento passa a ser responsabilidade dos hospitais. ACSS ainda não esclareceu os procedimentos.

Está a crescer a contestação aos alegados atrasos no acesso à medicação para a Hepatite C. Depois de algumas associações de doentes terem vindo denunciar a situação, esta quarta-feira o caso ganhou contornos políticos com o CDS a questionar o ministro da Saúde no Parlamento. Em causa estão as mudanças nas regras de financiamento deste tipo de medicação, tendo passado a pagamento a ser feito pelos hospitais, desde o início do ano.

A presidente da associação SOS Hepatites disse ao jornal Público que as reclamações de doentes começaram a chegar ainda no final do ano passado. Emília Rodrigues teme que os problemas se possam agravar por causa das dificuldades financeiras de muitos hospitais. É fora das grandes cidades que se sentem os maiores problemas de acesso ao tratamento.

“Temos queixas de doentes que dizem estar à espera de medicamentos prescritos que não chegam por causa das novas regras. Ninguém sabe o que fazer”, denuncia a presidente desta associação. “Estamos a regredir no que ganhámos. Não podem existir atrasos, nem deixar de haver tratamento”.

Regras mudaram e hospitais ressentem-se

No início do ano, as regras de financiamento da medicação mudaram. Até ao final de 2017, os hospitais viam o tratamento integralmente financiado pelo orçamento centralizado da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), através do registo dos doentes numa plataforma, sem interferência do hospital e como resultado do acordo firmado entre o Ministério da Saúde e os laboratórios que comercializam os medicamentos. Agora, e à semelhança do que acontece com outras doenças, existe um contrato programa que define à partida o custo da medicação de cada doente. No caso da Hepatite C, o valor ronda os 7 mil euros anuais.

Ora, como este valor pode não chegar para garantir a compra da medicação, há hospitais numa situação financeira mais delicada que têm receio do impacto que esta mudança possa ter suas nas contas. Há unidades que terão mesmo deixado de adquirir os fármacos e outras que restringiram o acesso dos doentes à medicação.

A SOS Hepatites não concorda com a medida e diz que a situação é grave, podendo colocar em causa a saúde dos doentes. A associação pode mesmo a “quem de direito que seja restabelecida a linha de financiamento adequada à hepatite C, evitando barreiras e questões de equidade ao nível dos hospitais”.

Em novembro, um vogal do conselho diretivo da ACSS, Ricardo Mestre, garantia que, mesmo com uma dotação fixa, todos os doentes seriam tratados. Contudo, os relatos que têm surgido parecem comprovar que isso não está a acontecer.

Ainda na quarta-feira, a deputada do CDS Ana Rita Bessa aproveitou a presença do ministro da Saúde na Comissão Parlamentar para levantar a questão. “Desde janeiro os hospitais terão deixado de adquirir medicamentos e estarão a aguardar uma circular conjunta da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e do Infarmed de como devem funcionar com este novo procedimento”, denunciou a deputada.

O ministro Adalberto Campos Fernandes, na resposta ao CDS, admitiu que as novas regras se devem à redução dos preços de mercado dos medicamentos para combater a Hepatite C. No entanto, afirmou que se há problemas no acesso dos doentes ao tratamento esses têm de ser resolvidos. “Qualquer limitação sinalizada [pelas associações] deve ser de imediato comunicada. Se existem problemas têm de ser corrigidos de imediato”.

Hospital de Loures com dúvidas

Uma das situações mais preocupantes vive-se no hospital de Loures, cujos doentes com hepatite C não estar a receber tratamento. O ministro da Saúde diz que esta situação não é admissível. “Se a PPP de Loures não trata os doentes com hepatite C, tem de tratar. Nem me quer passar pela cabeça que a PPP de Loures não está a cumprir a sua obrigação, enquanto entidade com contrato com o Estado, que é tratar os doentes da sua área de influência”, avisou o ministro, também em resposta do CDS.

Entretanto, o hospital Beatriz Ângelo de Loures, uma parceria público-privada, já confirmou o problema, lembrando que aguarda, por parte da ACSS, “a emissão dos títulos de compromisso dos nove doentes inscritos, ainda em 2017, na plataforma que valida os tratamentos da Hepatite C”. Ao Público, o hospital adiantou que a última vez que pediu esclarecimentos à ACSS foi a 14 de fevereiro, garantindo que “os doentes serão certamente tratados, como sempre aconteceu, dentro do prazo adequado e previsto clinicamente”.

O Hospital de Loures tem questionado tanto a ACSS como a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo sobre esta questão, isto porque, como os hospitais geridos através de uma PPP não dispõem de contratos-programa, estes ainda não foram informados de como vão proceder para os seus doentes terem acesso ao tratamento.

À semelhança do que fez a SOS Hepatites, também o Grupo de Ativistas em Tratamento (GAT) pediu uma reunião à ACSS para “avaliar e ajudar na implementação das novas regras para eliminar quaisquer barreiras que possam acontecer”.

“Numa reunião que fizemos com associações percebemos que na margem sul os hospitais estavam à espera de esclarecimentos e o processo de encomenda estava parado”, diz o GAT, que acrescenta que a perceção que existe é a de que, em janeiro, se registou um número baixo de prescrições.

O laboratório farmacêutico Gilead disse ao Público ter sentido este ano “uma redução muito assinalável nas encomendas”. “De salientar que em 2018, até à data, as encomendas recebidas referem-se apenas a pedidos de tratamento aprovados em 2017”. O laboratório adiantou que os hospitais lhe pediram informações sobre as novas regras, mas também a Gilead espera por esclarecimentos da ACSS.

Informações contraditórias

Contudo, o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, diz não ter indicação de atrasos. “A informação que tenho é que os hospitais estão a fazer pedidos para novos doentes. A única questão é que os hospitais têm de apresentar estimativas de doentes a tratar no ano e se esse número for ultrapassado, terá de haver um reforço do orçamento”, refere Alexandre Lourenço.

Também o Infarmed diz não ter identificado até ao momento limitações no acesso à medicação e assegura que a média mensal de doentes inscritos no portal criado em 2015 para monitorizar o acesso tem rondado os 300 doentes por mês entre janeiro e fevereiro, “o que acompanha as médias” dos últimos meses de 2017.

Procedimento complexo

A ACSS garante que, em breve, será emitida uma circular a esclarecer os procedimentos. A autorização do tratamento cabe à comissão de farmácia e às administrações dos hospitais e a compra passa a ser centralizada através dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS). Os hospitais têm até 23 de março para registar as previsões de consumo, para que os serviços façam depois a aquisição da medicação.

Este ano, a primeira compra centralizada só poderá ocorrer, por isso, depois de dia 23. Artur Mimoso, vogal dos SPMS para a área das compras centralizadas, explica que “serão feitas no ano todas as compras centralizadas que os hospitais precisarem” e que o procedimento de aquisição levará entre 15 dias e um mês. No entanto, o pagamento dos fármacos é responsabilidade das unidades hospitalares.

A ACSS esclarece que o financiamento passou a estar “integrado nos adiantamentos que mensalmente são remetidos aos hospitais”, como acontece com outras doenças, e que os hospitais “têm autonomia técnica e clínica” para prescrever os cuidados que consideram mais adequados.

Balanço positivo

Numa altura em que passam três anos sobre a celebração do acordo entre Ministério da Saúde e o laboratório Gilead, –  que permitiu começar a tratar todos os doentes com Hepatite C, com uma taxa de cura próxima dos 95% – o Infarmed avançou, a 14 de fevereiro, que se encontram em tratamento 15.518 doentes.

Se a este número juntarmos os 3411 doentes que ainda esperam pela medicação apesar de terem os seus tratamentos já terem sido aprovados, chegamos aos cerca de 18 mil doentes em tratamento de que falava o ministro da Saúde esta semana no Parlamento.

No último balanço que fez em fevereiro, o Infarmed adiantou que o número de doentes em fase precoce da doença a aceder à medicação estava a aumentar. Dos mais de 12 mil doentes que já concluíram o tratamento desde 2015, 8870 ficaram curados e apenas 305 não conseguiram eliminar o vírus.

Tiago Caeiro

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