Dia Mundial de Combate à Hepatite. “Os migrantes devem ser integrados em programas de rastreio”
No âmbito do Dia Mundial de Combate à Hepatite, que se celebrou no domingo, Paulo Carrola, coordenador do Núcleo de Estudo das Doenças do Fígado da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, faz uma reflexão sobre a forma como se tem processado o controlo das hepatites em Portugal. Em entrevista, refere temas como o impacto da imigração relativamente a estas doenças.

Quais são os principais fatores de risco para a transmissão de hepatites em Portugal?
As hepatites B e C são as que têm maior impacto na saúde e no prognóstico do doente e têm formas de transmissão muito idênticas, nomeadamente a toxicodependência (a partilha de seringas), os hábitos sexuais desprotegidos e as transfusões sanguíneas feitas antes dos anos 90. No caso da hepatite B, temos também a forma de transmissão vertical, de mãe para filho, que hoje em dia praticamente não existe, uma vez que faz parte do rastreio pré-natal.
É de destacar, também, a hepatite A, causadora de alguns surtos recentes também por transmissão sexual, principalmente nos indivíduos homossexuais, e também por via fecal-oral.
Por sua vez, a hepatite E, que também tem um impacto muito importante, afeta principalmente dois grupos: as grávidas (situações em que pode prejudicar tanto a mãe como o próprio feto), e os doentes imunocomprometidos. No caso desta hepatite, as transmissões são fundamentalmente por via oral, através do consumo de carnes mal cozinhadas ou de águas contaminadas.
Existe ainda a hepatite delta, que habitualmente funciona em conjunto com o hepatite B e que partilha com esta as mesmas fontes de transmissão.
“As hepatites com mais impacto são a B e a C e é para essas que está dirigido um maior número de esforços em termos de controlo, mas não é de descurar o impacto das restantes.”
Acredita que é possível que o cenário epidémico em Portugal se esteja a alterar devido à chegada de cada vez mais migrantes, especialmente provenientes de países em desenvolvimento? Quais são os grupos populacionais mais afetados no nosso país?
Os toxicodependentes são grupos de doentes que partilham um conjunto enorme de infeções, onde as hepatites também desempenham o seu papel, nomeadamente pela partilha de seringas. No entanto, acredito que, hoje em dia, existe muito mais sensibilização. As instituições governamentais e não governamentais têm feito um esforço enorme de apoio através de mecanismos de prevenção, seja pela divulgação do uso de preservativo, de implementação de programas de trocas de seringas e da vigilância dos hábitos de consumo de drogas.
Ainda assim, para além deste problema, persistem hábitos sexuais de risco, e os recentes surtos de hepatite A surgiram um pouco nesse contexto.
Para além disso, temos também um problema acrescido nesta dinâmica, que é algo que temos de abordar do ponto de vista da saúde pública. Falamos dos fluxos migratórios, seja no caso dos refugiados ou de imigrantes, provenientes de países com uma elevada incidência destas doenças. Nestes países não existe o mesmo controlo que em Portugal, quer do ponto de vista de vacinação, quer de tratamento.
Muitos dos refugiados que acolhemos atualmente são provenientes, maioritariamente, de países de leste, cuja realidade espelha uma prevalência muito mais alta de hepatite B do que em Portugal. Estes grupos populacionais deveriam ser também integrados em programas de rastreio e de acompanhamento médico, tal como os doentes portugueses. Acredito que as entidades estão alertadas para isso, mas existe ainda muito trabalho a fazer, até porque a imigração tem sido um problema crescente nos últimos tempos.
“A imigração é muito importante, mas devemos oferecer a quem entra no país as mesmas condições e estabelecer os mesmos planos de tratamento que temos para a população em geral.”
A nível de tratamentos, como se encontra o acesso? Existem obstáculos, seja a nível de custos ou de disponibilidade?
Para a hepatite B, os tratamentos que existem são os mesmo já há vários anos. Temos dois antivíricos, medicamentos com uma eficácia muito elevada para os doentes que têm indicação de tratamento, mas é um tratamento distinto da hepatite C. Na hepatite B, apesar de não atingirmos uma cura, uma vez que o vírus permanece na célula hepática, conseguimos controlar a doença. Contrariamente, no caso da hepatite C, temos antivíricos de elevada potência. Estes fármacos oferecem uma taxa de cura que a nível nacional, segundo os últimos relatórios, rondará os 94 a 95%. Isto significa que, em 100 doentes, 95 ficam curados e os tratamentos que existem são, de facto, suficientes para controlar a infeção.
Presentemente, o problema que existe não reside na disponibilidade de meios de tratamento, que felizmente, de acordo com as recomendações internacionais, Portugal tem, mas antes na questão do rastreio, de se conseguir diagnosticar e tratar os doentes infetados.
Nos últimos anos, conseguimos diminuir em muito o tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento, que numa fase inicial era muito burocrático. Este processo já é mais simples, o que leva a que o tratamento seja administrado mais rapidamente.
De futuro, no caso da hepatite C, se continuarmos a aumentar o número de tratamentos, e sendo que existem cada vez menos doentes, vamos assistir a uma inversão da prevalência da doença na população, o que indica que estamos no bom caminho.
“O grande problema não está no tratamento, mas naquilo que está a montante.”
Acredita que deve haver um envolvimento mais ativo por parte do Governo no que diz respeito à definição e implementação de mais indicadores e rastreios adaptados às necessidades das várias hepatites?
É a tutela que define as linhas orientadoras em Portugal, pelo que acredito que sim. O grande problema reside na organização e na definição de estratégias. Assim, o Governo podia providenciar uma ajuda mais positiva no sentido de melhorar a organização entre todas as estruturas, não só governamentais, como não governamentais.
Existem inúmeras instituições não governamentais que trabalham nesta área, com um papel importantíssimo, mas sozinhas não conseguem fazer tudo. É necessário que o Governo se alie a estas estratégias de forma a conseguirmos atingir o objetivo final da OMS, que é a erradicação das hepatites até 2030. Só com uma dinâmica partilhada e com uma organização mais eficiente é que lá conseguiremos chegar.
Quais são as expectativas futuras para o controlo das hepatites em Portugal?
Sou um otimista e penso que as expectativas que temos em termos de controlo de infeção não podem deixar de ser positivas. No entanto, podemos fazer mais. A implementação de um teste universal, feito pelo menos uma vez na vida a todas as pessoas, é fundamental. Em qualquer momento da nossa vida pode ter surgido algum episódio que, eventualmente, possa ter desencadeado uma transmissão sem conhecimento.
Além disso, é muito importante manter a dinâmica das estratégias de micro-eliminação, vocacionadas para grupos de risco mais restritos, com a ajuda das organizações não governamentais.
Relativamente à hepatite C, devemos melhorar ainda mais a disponibilidade da medicação para o tratamento, retirando toda a burocracia que ainda existe no acesso, e conseguir que o tratamento chegue ao doente de uma forma mais rápida.
Cláudia Gomes
Notícia relacionada