Covid longa. Faltam centros de referência e maior sensibilização da comunidade médica
É difícil esquecer o tempo da pandemia covid-19, sobretudo se se ficou com uma condição chamada covid longa. O Conselho Nacional Científico em Encefalomielite Miálgica/Covid longa e Doenças Pós-Virais (CNCPV) alerta para a necessidade de se criarem centros de referência, numa altura em que deixa de haver consultas específicas no Serviço Nacional de Saúde.
A covid-19 deixou de ser uma ameaça pandémica, mas para 336 mil portugueses ainda é um problema diário por causa da denominada covid longa. Após terem sido infetados, nunca mais conseguiram viver sem determinados sintomas e há quem tenha sido obrigado a mudar a sua vida. “Há pessoas que deixaram de trabalhar por não conseguirem aguentar as habituais 35-40 horas de jornada semanal de trabalho”, diz-nos João Carlos Winck, pneumologista e coordenador da Unidade de Pneumologia e Consulta de Fadiga Crónica do Instituto CUF Porto.
Além da fadiga extrema, os doentes reportam, sobretudo, dispneia ou cansaço excessivo para esforços, alterações cognitivas ou do sono, taquicardia, aperto no peito, névoas cerebrais, dores musculares, cefaleias mais ou menos intensas e até problemas de pele. “A covid longa é uma patologia muito heterogénea, que ainda está a ser estudada. Mas sabe-se, desde já, que tem um impacto significativo na vida de milhares de pessoas no mundo, pois é uma doença multiorgânica e multissistémica”, refere o pneumologista.
Face ao impacto desta condição clínica e ao facto de muitos doentes não conseguirem ter acesso a um diagnóstico e ao tratamento mais adequado, o médico defende mais informação e formação. “Há muitos doentes que procuram ajuda e que são apenas medicados com antidepressivos, por se considerar que se trata apenas de um problema do foro mental”, afirma. Mas, como explica, a covid longa é uma patologia complexa e que merece toda a atenção por parte do sistema de saúde. “A fadiga extrema e a dificuldade em praticar determinados esforços, nem que seja ler um livro, deve-se a mudanças orgânicas, a alterações nas mitocôndrias, não se trata de uma questão psicossomática”, especifica.
“Ligações claras e significativas” entre SARS-CoV-2 e disfunção mitocondrial
O quadro clínico é, assim, bastante variável, podendo prevalecer um cansaço persistente e profundo sem razão aparente e um mal-estar após atividades físicas, mentais e emocionais. João Carlos Winck já prescreve, na sua consulta, um exame de esforço cardiopulmonar, que comprova que “as pessoas não estão cansadas apenas por uma questão meramente psicossomática”.
Isso mesmo comprovam estudos internacionais, segundo as quais se verifica um comprometimento mitocondrial, que pode desempenhar um papel crucial na constelação de sintomas. Segundo o estudo “Mitochondrial dysfunction in long covid: mechanisms, consequences, and potential therapeutic approaches”, de abril de 2023, existem “anormalidades na respiração mitocondrial e na bioenergética”, assim como “na expressão génica relacionada às mitocôndrias, em células mononucleares do sangue periférico de pacientes com covid longa”.
“Essas anormalidades são indicativas de comprometimento da produção de energia mitocondrial, que pode estar subjacente a sintomas de fadiga e fraqueza muscular”, avança-se no abstract, publicado no PUBMED Central. Além disso, em estudos em que se recorreu a espectroscopia de ressonância magnética (MRS) foram observadas alterações no tecido muscular e no cérebro, “indicativas de disfunção mitocondrial em pacientes com covid longa”. Apesar de os dados obtidos no coração terem sido inconclusivos, os investigadores realçam que “estas descobertas estão alinhadas com relatos clínicos de intolerância ao exercício e mal-estar pós-esforço entre estes indivíduos”.
Um outro trabalho científico, publicado em janeiro de 2023, na Nature Reviews Microbiology, descreve cinco mecanismos que podem explicar esta condição clínica. São estes: autoimunidade, desregulação imunitária, problemas relacionados com sinalização neurológica, desregulação do microbioma e problemas associados a fatores de coagulação do sangue.
Segundo os autores, “com base em mais de dois anos de investigação sobre covid longa e décadas de investigação sobre condições como EM/SFC, uma proporção significativa de indivíduos com covid longa pode ter incapacidades para o resto da vida se nenhuma ação for tomada”.
Outro estudo recente, de agosto deste ano, sugere “ligações claras e significativas” entre a infeção por SARS-CoV-2 e a disfunção mitocondrial, autofagia, resposta imune inata e função metabólica celular. “A circulação do mtDNA desempenha claramente um papel na patogénese aguda da covid-19”, pode ler-se no abstract do estudo da Universidade de Medicina de Gdańsk (Polónia).
Continuando: “Novas evidências de sequestro de RNA de SARS-CoV-2 na matriz mitocondrial do hospedeiro, além do nucléolo, previstas por modelos computacionais e confirmadas em laboratório, fornecem dicas tentadoras sobre possíveis ligações entre disfunção do sistema imunológico mitocondrial e inato, persistência viral e pós- sequelas agudas de covid-19.”
Apesar desta descoberta, os investigadores consideram que “o facto de a associação PASC-mtDNA ainda não ser totalmente compreendida, destaca a necessidade de continuar a identificar as lacunas atuais no nosso conhecimento”.
Outros trabalhos de investigação têm permitido, também, concluir que a covid longa pode ser enquadrada na família das síndromes de fadiga pós-infeção (SFPI), tipicamente crónicas, que ocorrem após determinadas infeções. “Tem características comuns com a síndrome de fadiga crónica e encefalomielite miálgica”, realça João Carlos Winck.
Face ao sofrimento dos doentes e à escassez ou quase ausência de resposta no sistema nacional de saúde, em particular, no Serviço Nacional de Saúde (SNS), o pneumologista defende, assim, a criação de centros de referência. “Podem ser afetados diferentes órgãos, por isso é importante contar com uma equipa multidisciplinar, porque os doentes não sabem aonde se dirigir.”
Apesar de ainda não existir uma “pílula mágica” para o tratamento da covid longa, o pneumologista diz que há várias formas de intervir para minimizar o impacto desta condição clínica. “Os sistemas de saúde têm de se preparar para dar resposta. Repare que se trata também de uma doença profissional, no caso dos profissionais de saúde, que estiveram na linha da frente e que atualmente têm dificuldades para trabalhar.”
Centros de referência e investigação. “É preciso sensibilizar e formar os profissionais de saúde”
Um dos problemas que se enfrenta, atualmente, na resposta à covid longa, nomeadamente em Portugal, é a dificuldade em se fazer investigação, como alerta Nuno Sepúlveda, epidemiologista representante de Portugal na EUROMENE (European Network on Myalgic Encephalomyelits/Chronic Fatigue) e investigador do Centro de Estatística e Aplicações da Universidade de Lisboa. “A deteção destas síndromes torna-se problemática quando os seus casos ocorrem sem um forte enquadramento epidemiológico. Muitos parecem cair num limbo em que, apesar de ultrapassada a fase aguda da infeção, o paciente vai passando de especialista em especialista, sem que nenhum deles consiga estabelecer um diagnóstico correto ou uma terapêutica adequada.”
Em Portugal, existem orientações para o diagnóstico e para a prática desde 2022 (norma número 002/2022 do SNS), mas ainda há muito trabalho a ser feito. “É preciso sensibilizar e formar os profissionais de saúde, porque para se apostar em mais trabalhos de investigação de âmbito nacional, é preciso que a covid longa seja reconhecida, pela comunidade médica, como uma patologia”, aponta.
Nuno Sepúlveda defende, também, a necessidade da existência de pelo menos um centro nacional de referência para doentes, com o objetivo de diagnosticar convenientemente a doença. “Muitos pacientes enfrentam dificuldades devido à falta de conhecimento especializado e à complexidade dos sintomas, que frequentemente levam a diagnósticos errados ou tardios. Além disso, é essencial tratar estas síndromes crónicas, que podem resultar em consequências graves, como incapacidade prolongada, fadiga extrema, disfunções cognitivas, dor crónica, intolerância ortostática, dificuldades respiratórias, problemas gastrointestinais e distúrbios do sono, comprometendo gravemente a qualidade de vida e a autonomia dos doentes.”
Para o epidemiologista, um centro de referência tem ainda a vantagem de poder contar com uma equipa multidisciplinar. “Sendo a covid longa uma patologia multiorgânica e multissistémica, é essencial que os centros contem com o contributo de especialistas em Medicina Geral e Familiar e de Medicina Interna, em particular, já que têm uma visão holística da saúde.”
Enquanto não se avança com os centros de referência em Portugal, Nuno Sepúlveda e os colegas que integram o CNCPV iniciaram um estudo na região da Madeira. O objetivo é perceber quantas pessoas ainda apresentam sintomas cerca de quatro anos depois do início da pandemia, e qual o impacto da infeção a médio e longo prazo na saúde física e mental.
Para tal, o grupo de investigadores vai analisar os registos de saúde oficiais da Região Autónoma da Madeira para apurarem, numa primeira fase, a percentagem de pessoas que tiveram covid-19 face à população total da região; depois, analisar-se-á quantas tiveram ou ainda têm sintomas possivelmente desencadeados pela infeção do vírus SARS-CoV-2.
“A covid longa é uma emergência de saúde”
Joan Serra Hoffman, cofundadora da Aliança Millions Missing e integrante do CNCPV é mais uma das vozes defensoras da criação de centros de referência. “A covid longa tem características idênticas de quadro pós-infecioso, tal como acontece com a EM/SFC, outras patologias esquecidas. É preciso dar uma resposta concreta em termos de diagnóstico e tratamento, com profissionais experientes”, diz.
Com estes centros também seria mais fácil apostar-se em estudos que dessem uma ideia concreta da realidade portuguesa. “Existem poucos trabalhos com evidência científica robusta e estes centros iriam contribuir também para que se apostasse mais na investigação e na formação dos profissionais de saúde.”
Joan Serra Hoffman espera, ainda, a criação de centros de atendimento em diferentes regiões do país, para que os cuidados de saúde cheguem a mais pessoas, já que deixou de haver respostas para covid longa no SNS. “Os doentes precisam de ajuda, de saber aonde se devem dirigir, para que consigam um diagnóstico atempado, evitando a progressão da doença e mais qualidade de vida”, enfatiza. “Este tipo de patologias continua a ser invisível e isso pode levar ao agravamento do estado de saúde. Por exemplo, no caso da EM/SFC, o exercício físico, como recomendam alguns médicos, é contra indicado, piora os sintomas.”
À frente da Aliança Millions Missing desde que a fundou, em 2018, diz que vai continuar a apostar na sensibilização, na informação e na formação da população e dos profissionais de saúde. A instituição está, inclusive, a trabalhar na elaboração de orientações para que os profissionais de saúde estejam atentos a determinados sintomas e sinais. Está também a organizar talk-shows e a 2.ª Conferência Internacional sobre Avanços Clínicos e Científicos em EM/SFC e Covid Longa, em 2025. “Estamos perante uma emergência de saúde, um problema humanitário, pois afeta muitas pessoas e não podemos parar”, conclui.
Maria João Garcia
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