A Qualidade da Morte
Medicina Interna CHUdSA – Porto

A Qualidade da Morte

Morrer é um destino certo, que queremos adiar. A vida vai podendo ser prolongada com medicamentos, cuidados e próteses, pelo que a idade não é um indicador fiável para uma morte próxima. Há cada vez mais centenários vivos, e muitos deles felizes, com uma vida que vale a pena.

Cada vez se morre mais nos hospitais. É uma tendência mundial, que também Portugal acompanha, pois em cada dez mortes, seis ocorrem no hospital. Embora, na maioria dos casos, a morte no hospital não seja uma escolha do falecido, a evolução nesse sentido é crescente. Há muitas razões apontadas, umas mais compreensíveis do que outras: casa sem condições, melhores cuidados no hospital, crianças no domicílio, a morte impregnada na cama em que ocorreu…

A taxa de mortalidade nos serviços hospitalares nunca foi tão elevada como agora. Principalmente nos Serviços de Medicina Interna, que recebem os mais velhos e mais doentes, a mortalidade ronda os 20%. Alguns são doentes muito complexos, com diagnósticos escondidos, que ainda vale a pena procurar, que acabam por não resistir à doença avassaladora. Outros, já vêm apenas para morrer.

Sempre me impressionaram muito as mortes registadas no Serviço às 8h da manhã. São os doentes falecidos, cuja morte foi constatada na mudança de turno dos enfermeiros. Fico a pensar em como terão sido aquelas últimas horas, em solidão absoluta, por vezes acentuada por um biombo.

A morte não é necessariamente um falhanço da equipa de saúde. Mas pode sê-lo se não foram proporcionados todos os cuidados necessários a esta última fase da vida. É preciso afastar a dor, a falta de ar, a náusea, o vómito, a prisão de ventre e a sede! É preciso dar tempo ao doente, para podermos intermediar querelas familiares ou apaziguar conflitos. É preciso conhecer as suas preocupações, sociais ou outras, em que possamos ajudar. É preciso respeitar e cumprir os preceitos religiosos do moribundo e da família.

Os serviços devem ser avaliados pela sua qualidade assistencial, com os vários parâmetros conhecidos, gerais e de acordo com as patologias mais prevalentes (demora média, taxa de reinternamento, número de diagnósticos por episódio, taxa de mortalidade, infeção hospitalar). Mas a qualidade da morte deve passar a ser um parâmetro a ter em conta. Os serviços devem instituir processos de auditoria acerca das circunstâncias da morte, assegurando que tudo foi feito para que morte ocorresse em paz, sem dor e com a terapêutica adequada às últimas horas de vida.

E, mais do que tudo, devem ter uma reunião mensal de mortalidade, para discutirem entre pares todos os falecidos. Por experiência própria, asseguro que se aprende muito e se torna a equipa de saúde mais forte, motivada e solidária.

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