31 Jan, 2024

“A melhoria das UCI pode ser o ponto de viragem para que as crianças não passem o resto da vida com um transplante”

No passado dia 20 de janeiro a Unidade de Hepatologia e Transplantação Hepática Pediátrica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) celebrou 30 anos de atividade. Em entrevista, Isabel Gonçalves, coordenadora desta unidade, aborda as conquistas e os desafios na área da hepatologia pediátrica.

Atualmente, o que leva a que uma criança tenha de ser submetida a um transplante hepático?

As principais razões continuam a ser doenças em que as crianças nascem com malformações nos canais que transportam a bílis para o intestino. As crianças que são transplantadas nascem sem estes canais, ou pode ainda ocorrer o caso de os canais serem destruídos rapidamente após o nascimento. Esta condição denomina-se atresia das vias biliares e é, em todo o mundo, responsável por 30 a 40% das necessidades de transplantes, sobretudo de crianças com idades inferiores a 10 anos.

O segundo grande grupo que tem vindo a ter um crescendo de indicações são as chamadas doenças metabólicas ou erros do metabolismo. Em alguns centros, esta indicação já é responsável por 25% dos transplantes por ano. Estas são situações em que existem enzimas que têm atividade em vários órgãos. Porém, devido ao facto de o fígado ser uma central metabólica por natureza, este erro acaba por ser demasiado impactante.

Embora em alguns casos o problema não seja totalmente resolvido, estas crianças podem beneficiar com a substituição do órgão que tem este erro, pode conseguir-se uma qualidade de vida superior e o abandono de dieta estritas.

Nos últimos 20 anos, as crianças com diversificados erros do metabolismo têm sido uma indicação crescente para realizar um transplante em idades mais jovens, com o objetivo de prevenir as complicações que estes erros possam provocar a outros órgãos. Ou seja, é quase uma atitude preventiva: na maioria das vezes o fígado não está doente, mas tem um erro que pode vir a ter implicações noutros órgãos do corpo.

No que diz respeito a crianças com uma súbita falência de fígado, importa salientar que estas situações acontecem esporadicamente em crianças saudáveis, representando cerca de 12% dos casos de transplante. Um dos nossos objetivos, e esperemos conseguir concretizá-lo na próxima década, consiste em fazer com que menos de 5% de crianças precisem de um transplante numa situação aguda.

Efetivamente, a melhoria de suporte em Unidades de Cuidados Intensivos e a maior facilidade de os Pediatras estarem alerta e fazerem diagnósticos pode ser o ponto de viragem para que as crianças não tenham de passar o resto da vida com o transplante, que é uma nova doença, mas que possam regressar à sua linha de base e à sua vida normal, com o seu fígado nativo.

 

Relativamente à Unidade de Hepatologia, quais foram os pontos altos registados ao longo destes 30 anos?

O maior objetivo nesta área, cujas patologias causam limitações em termos de qualidade de vida, é conseguir diminuir ao máximo a mortalidade, que, de facto, tem diminuído ao longo dos anos e ronda agora os 10 a 15%. Existe uma melhoria, mas é quase impossível conseguirmos salvar todas as crianças.

Toda a nossa intervenção ao longo do tempo consiste em antecipar problemas que sabemos que são mais frequentes, evitando que aconteçam e isto vai ter impacto na sobrevida e na qualidade de vida desses doentes.

Um dos nossos grandes marcos é que ao fim de alguns anos, como aconteceu recentemente, algumas destas crianças nos visitem e tenham as suas famílias e a sua vida estruturada. Mais de 60% dos doentes adultos transplantados em crianças respondem aos questionários da OMS e de outras entidades sobre qualidade de vida reconhecendo que têm uma boa ou excelente qualidade de vida.

 

Sendo a única no país, esta unidade acaba por ter um papel muito importante a nível nacional?

É uma unidade de referência. É evidente que existem desvantagens para os doentes que vivem a uma maior distância, mas pelo menos no que diz respeito ao período de vigilância (os primeiros seis meses após a cirurgia), já conseguimos uma rede com vários centros pediátricos de Norte a Sul do país, onde existem especialistas de Gastroenterologia, Nutrição e Hepatologia. Assim, partilhamos com estes centros a vigilância e as consultas, minimizando as deslocações a Coimbra dos doentes que vivem mais longe.

“O facto de termos conseguido formar colegas capazes de responder da mesma maneira que nós durante a vigilância futura destes pacientes foi um trabalho desenvolvido ao longo de 30 anos.”

Quais são os desafios atuais desta unidade e desta área?

Sendo Portugal um país com 10 milhões de habitantes e com menos de 1 milhão e meio de jovens até aos 18 anos, a taxa de transplantação anual é relativamente baixa, mas está de acordo com a população. Portanto, 10 a 12 transplantes por ano é o que centros como o de Boston e outros nos Estados Unidos também fazem, contando com a mesma população de referência em termos de idade até aos 18 anos.

Porém, existe aqui um desafio. Por um lado, é bom que não tenhamos tantos doentes e existam alternativas de tratamento. Por outro, em termos de manutenção de uma equipa ao longo dos anos e de manter a sua formação, um programa de baixo volume tem sempre mais limitações.

Gostaríamos de poder ter uma formação contínua dos profissionais mais jovens, bem como elementos de maior informação, mas reconhecemos que efetivamente os recursos humanos dos hospitais têm que ser afetados de acordo com as necessidades globais das instituições. Por esse motivo nunca conseguimos formar mais do que uma pessoa a cada 5 anos, o que de certa forma pode ser limitativo, sobretudo na área cirúrgica.

Além disso, confesso que nos preocupa muito a questão dos PALOP, com os quais temos acordos de saúde reconhecidos nas várias áreas. A área da transplantação hepática pediátrica é uma área, em particular, que cria problemas a esta população emigrante.

Aquando da necessidade de uma transplantação hepática pediátrica, por norma, deslocam-se a Portugal uma mãe ou um pai e uma criança. Existe aqui uma perda familiar, porque estas crianças dificilmente vão voltar aos seus países de origem.

No fundo, o transplante é uma nova doença que lhes pode dar uma melhor qualidade de vida, mas que vai precisar de vigilância e de centros capazes de o fazer ao longo da vida. Dificilmente estas crianças podem voltar, o que cria problemas em termos familiares, mas também em termos de instituições e de governação.

Já temos este problema desde 1997 e, efetivamente, ainda não conseguimos dar resposta de modo a criar uma estrutura que garanta as condições das crianças de modo a regressarem às famílias e de se reagruparem. Isto seria um grande objetivo, mas já era um objetivo praticamente desde o início do programa. Vamos esperar para ver o que é que a geração a seguir vai conseguir fazer, juntamente com as instituições que devem ser naturalmente envolvidas.

 

CG

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