22 Fev, 2023

“A endometriose para ser tratada de uma forma holística necessita de centros multidisciplinares”

Fátima Faustino é desde janeiro a nova presidente da Direção da Sociedade Portuguesa de Ginecologia para o triénio 2023-2025. Querendo apostar num trabalho de continuidade face aos presidentes anteriores, não vai esquecer a endometriose, que deve ser tratada por vários profissionais de saúde.

Quais os seus objetivos neste mandato?

Ao aceitar este mandato como presidente da SPG assumi a enorme responsabilidade de continuar o excelente trabalho dos meus antecessores, manter o nível científico em todas as atividades da sociedade e acompanhar o desenvolvimento tecnológico, visando o futuro. Neste sentido um dos meus objetivos é atrair os mais jovens para uma participação mais ativa, em que a sua dinâmica possa acrescentar uma mais-valia às nossas iniciativas e que aliada à experiência dos mais velhos possa contribuir para um avanço qualitativo na formação pós-graduada, na atualização científica e na evolução técnica. Outro objetivo é unir as diferentes secções e núcleos com as suas especificidades nas áreas respetivas, de modo a conseguirmos uma sociedade estruturada e abrangente, que represente todos os ginecologistas com competência e dignidade e que seja reconhecida quer a nível nacional quer internacional.

 

A SPG está integrada na Federação de Sociedades Portuguesas de Ginecologia e Obstetrícia (FSPGO). Quais as mais-valias?

A FSPOG integra a Sociedade Portuguesa de Ginecologia, a Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, a Sociedade Portuguesa da Contracepção e a Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-Natal, sendo o grande objetivo a coordenação da atividade científica das diferentes sociedades, a calendarização organizada das suas reuniões de modo a evitar sobreposições e o reforço da representatividade a nível internacional das sociedades científicas ligadas à Ginecologia e Obstetrícia. A criação pela FSPOG da Acta Obstétrica e Ginecológica em 2007, revista de elevado nível científico, veio permitir um espaço onde é possível apresentar o trabalho e a investigação clínica desenvolvida nesta área. Também a realização de um Congresso trianual que envolve todas as sociedades afiliadas reforça o objetivo de união e entendimento entre todas. Por fim, a ligação aos mais jovens traduz-se no apoio à PONTOG (Portuguese Network of Trainees in Obstetrics and Gynecology), uma associação dos internos de especialidade ligada a nível internacional à ENTOG (European Network of Trainees in Obstetrics and Gynecology).

“A endometriose afeta cerca 10% das mulheres em idade fértil, estimando-se que cerca de 176 milhões de mulheres no mundo possam sofrer com esta doença”

Na sua opinião o que vai ser mais desafiante neste novo cargo, tendo em conta que se mantém como coordenadora da Unidade Integrada de Endometriose do Hospital Lusíadas Lisboa?

Não só a coordenação da Unidade Integrada de Endometriose, como também a coordenação de toda a Unidade de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Lusíadas Lisboa desde 2018, são tarefas já de si desafiantes e envolventes. Por essa razão tive dúvidas em aceitar este novo cargo, mas o apoio de todos os elementos da Direção, Secções e Núcleos ajudaram-me a decidir enveredar por mais este desafio, que espero cumprir com competência, por vezes desejando que o dia tenha mais do que 24h e agradecendo à família todo o apoio e horas roubadas.

 

Relativamente à endometriose, qual a prevalência desta doença?

A endometriose afeta cerca 10% das mulheres em idade fértil, estimando-se que cerca de 176 milhões de mulheres no mundo possam sofrer com esta doença. Em cerca de 25 a 45% dos casos, a endometriose pode causar infertilidade.

 

Existe um perfil de doentes, alguma característica em particular que leve a que surja a doença?

Trata-se de uma doença multifatorial em que se pensa que o stresse e a poluição podem contribuir para o agravamento da mesma, justificando porventura os casos cada vez mais precoces e mais graves com que nos deparamos. Claro que quando existe uma história familiar de endometriose estaremos ainda mais atentos à eventual ocorrência da doença.

“Se associado à dor acontecer compromisso da capacidade reprodutora da mulher, podemos certamente imaginar os anos de angústia e sofrimento por que estas doentes passam”

E é altamente incapacitante…

Sem dúvida, já que o sintoma principal é a dor. Com frequência encontramos casos que associam dores intensas durante a menstruação (dismenorreia) que não cedem à terapêutica analgésica e anti-inflamatória habitual, dor durante a relação sexual (dispareunia), dor à defecação (disquesia) e à micção (disúria), algias pélvicas crónicas independentes da fase do ciclo menstrual da mulher e hemorragia vaginal irregular. Como é fácil compreender, a qualidade de vida destas mulheres ficará altamente comprometida a diversos níveis: familiar, laboral e social, com todas as repercussões daí inerentes. Se associado à dor acontecer compromisso da capacidade reprodutora da mulher, podemos certamente imaginar os anos de angústia e sofrimento por que estas doentes passam, tendo em conta que o diagnóstico da doença é muitas vezes tardio.

“Está descrito uma média de oito a 12 anos entre o aparecimento das queixas e o diagnóstico da doença, porém eu quero acreditar que este tempo já estará reduzido”

Que avaliação faz do diagnóstico e do tratamento da endometriose em Portugal?

Durante muito tempo a doença foi subvalorizada e confundida com as habituais cólicas menstruais “que iriam melhorar com uma gravidez”. Está descrito uma média de oito a 12 anos entre o aparecimento das queixas e o diagnóstico da doença, porém eu quero acreditar que este tempo já estará reduzido, não só por uma maior sensibilização da classe médica para a doença, como também por uma maior procura das doentes para a resolução do seu problema. Claro que o diagnóstico precoce é fundamental para ser possível o controlo da doença, de modo a evitar as repercussões mais graves da mesma. Essa sensibilização da classe médica, nomeadamente dos cuidados de saúde primários, associada a uma maior divulgação da doença e ao trabalho desenvolvido pelas próprias doentes, através de associações como a Mulherendo, tem permitido a referenciação das doentes para centros de tratamento multidisciplinar, distribuídos por várias zonas do País.

 

No Serviço Nacional de Saúde, o que pode melhorar para que estas doentes possam ter um tratamento mais holístico?

Muito há ainda a fazer e no meu entender passa por aumentar a sensibilização e a formação dos profissionais de saúde que venham a trabalhar nesta área, de modo a multiplicar os centros de referenciação existentes. A endometriose para ser tratada de uma forma holística necessita de centros multidisciplinares que disponham de ginecologistas gerais, cirurgia ginecológica minimamente invasiva, cirurgia colo-rectal, urológica e por vezes torácica, imagiologia avançada, fisioterapia, psicoterapia… e técnicas de reprodução medicamente assistida, quando necessário.

“Apesar de ser uma doença crónica, sem um tratamento que garanta a cura, dispomos atualmente de tratamento médico que nos permite controlar a sintomatologia”

Passa também por uma maior articulação com os cuidados de saúde primários, já que muitas mulheres são acompanhadas somente por médicos de família?

A sensibilização e conhecimento das características da doença pelos médicos de família serão essenciais para um melhor tratamento e eventual referenciação destas doentes.

 

Na sua opinião, ainda existe muito desconhecimento e algum estigma em relação à endometriose?

Muito menos do que já houve, mas exigindo ainda algum trabalho de esclarecimento. O diagnóstico precoce da endometriose é fundamental, mas temos de evitar a ansiedade que o mesmo pode condicionar em doentes jovens, que receiam ver a sua fertilidade comprometida. Apesar de ser uma doença crónica, sem um tratamento que garanta a cura, dispomos atualmente de tratamento médico que nos permite controlar a sintomatologia e, em muitos casos, a progressão da doença, protelando para mais tarde e para os casos mais graves a intervenção cirúrgica.

 

Ser presidente da SPG pode ajudar a divulgar mais esta doença?

Sem dúvida, mas esse trabalho já começou em anteriores direções e certamente vai ser continuado pela atual. O tema Endometriose é habitualmente debatido nas nossas reuniões científicas e foi âmbito da publicação de um Consenso sobre Endometriose em 2015, que tencionamos rever e atualizar em breve.

SO

 

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