27 Out, 2023

Saúde Mental. “É necessário dar apoio aos pais que sofreram experiências adversas no passado”

No âmbito do simpósio que marcou o início do projeto europeu “Let’s Talk About Children” (LTC), com o intuito de promover a saúde mental de crianças, jovens e famílias, o SaúdeOnline entrevistou Joaquim Cerejeira, professor de Psiquiatria na Universidade de Coimbra e coordenador do projeto em Portugal.

No simpósio foram mencionados e correlacionados temas como a justiça, a educação, a pobreza e a violência doméstica no âmbito da saúde mental no seio familiar. Qual o impacto de cada um destes fatores na saúde mental e no desenvolvimento das crianças?

As crianças e os jovens passam grande parte do seu tempo com a família e na escola. Por isso, tudo o que acontece nestes contextos tem uma enorme influência no seu desenvolvimento e na sua saúde mental. Em condições ideais, a família e a escola ajudam a criança/jovem a construir a sua própria identidade e a desenvolver as suas capacidades emocionais, cognitivas, pessoais e sociais. No entanto, é também na família e na escola que a criança/jovem pode ser exposta a experiências adversas e emocionalmente perturbadoras que prejudicam a sua saúde mental.  Por exemplo, o stress intenso vivido pela criança/jovem devido a carência económica, violência doméstica, maus-tratos, negligência, abandono ou discriminação irão ter  um impacto negativo.

Por sua vez, estes problemas vão agravar as suas dificuldades de integração na família e na escola e o sistema judicial pode ser chamado a intervir perante fatores de risco graves. Família, escola, serviços de saúde e sistema judicial devem trabalhar em conjunto para identificar precocemente as crianças em risco.

“Devem ser desenvolvidas ações eficazes para evitar a exposição da criança/jovem a experiências adversas e a minimizar as suas consequências negativas.”

 

Qual a importância da capacitação dos profissionais que lidam diariamente com famílias?

É essencial  que os profissionais da educação saibam identificar sinais precoces de problemas de saúde mental. Por exemplo, uma criança pode manifestar dificuldades de aprendizagem, insucesso escolar ou problemas de comportamento quando se encontra em sofrimento emocional intenso. Nesses casos, é fundamental que os professores e educadores consigam reconhecer as necessidades dessas crianças/jovens e também compreender quais os fatores que poderão estar a originar essas alterações. Deve também existir uma boa comunicação entre docentes/educadores e os profissionais de saúde.

No programa de capacitação do LTC, os professores, educadores e profissionais de saúde serão treinados a avaliar, com a colaboração da família, os fatores de vulnerabilidade e os pontos fortes da vida da criança/jovem. Isso ajuda a própria família a identificar e a desenvolver os seus pontos fortes na vida quotidiana e a encontrar soluções para questões difíceis. O programa foi concebido para apoiar as famílias e fornecer-lhes as ferramentas de que necessitam para enfrentar os desafios quotidianos.

 

Qual a importância da manutenção de um seio familiar harmonioso para a saúde mental da criança?

Uma das principais razões para promover um ambiente familiar harmonioso é que isso irá ajudar a que as crianças sejam mais felizes no futuro. Quando os elementos de uma família se apoiam mutuamente, se sentem compreendidos, protegidos e amados, sentem-se mais confiantes para enfrentar as adversidades do dia-a-dia.

Além disso, a família pode proporcionar oportunidades para a criança viver experiências positivas e estimulantes, de as interiorizar e de as partilhar com outras pessoas e de construir relações afetivas fortes. Isso permitirá o pleno desenvolvimento das suas capacidades, uma maior estabilidade emocional e maior autoestima. A forma como os membros da família comunicam entre si pode também influenciar o estado emocional das crianças.

“Quando a comunicação é tranquila e franca, as pessoas sentem que podem expressar as suas emoções, preocupações e dificuldades, o que reforça a ligação entre todos. Pelo contrário, uma comunicação hostil, crítica ou conflituosa inibe as pessoas de se expressarem e aumenta o seu isolamento e sofrimento emocional.”

 

Qual é o impacto das vivências de infância num futuro adulto?

As pessoas usam as experiências do dia-a-dia, desde a infância e durante toda a vida, para construir a sua identidade, para tomar decisões e para interagir com as outras pessoas. Por exemplo, as crianças que têm experiências positivas durante as quais ultrapassaram dificuldades com sucesso, terão tendência  a ser mais confiantes para enfrentar os desafios no futuro.

Pelo contrário, experiências negativas ou fracassos diminuem a autoconfiança e aumentam a ansiedade. As experiências da infância ajudam a orientar o comportamento e a tomar decisões mais acertadas. As regras e limites que nos são colocados na infância (pela família, na escola, etc.) influenciam a nossa perspetiva ao longo da vida sobre o que são comportamentos “corretos” e “incorretos”. Quando interagimos com as outras pessoas recorremos às nossas vivências da infância para replicar os modelos de relação que tivemos no passado.

“Olhar para o passado e poder dizer que se teve “uma infância feliz” é meio caminho andado para enfrentar o futuro com confiança e estabilidade emocional.”

 

Quais as competências fundamentais que as famílias devem ter em prol da saúde mental das crianças?

Todas as famílias têm pontos fortes e vulnerabilidades em relação à forma como promovem a saúde mental das crianças. Não há uma receita mágica para promover a saúde mental, uma vez que esta depende de inúmeros fatores. De uma forma geral, podemos dizer que o ambiente familiar promove a saúde mental das crianças se criar e estimular hábitos e comportamentos saudáveis no dia-a-dia. Esses comportamentos manifestam-se, por exemplo, na forma como a criança se relaciona com os outros, como reconhece e lida com as suas emoções, como pensa sobre as situações do dia-a-dia, como demonstra empatia com os outros e como enfrenta os desafios do dia-a-dia.

Os pais (e outros cuidadores) podem promover a saúde mental da criança definindo regras e limites no seu comportamento, estabelecendo relações afetivamente próximas com ela, promovendo a sua autonomia ao mesmo tempo que a protege, incentivando os contactos sociais e demonstrando, através do seu próprio exemplo, quais são os comportamentos saudáveis.

 

É possível interromper a transmissão de um ciclo intergeracional de problemas de saúde mental nas famílias?

As crianças que vivem em famílias com problemas de saúde mental ou que são expostas a situações de elevado stress estão mais sujeitas a manifestar ansiedade, culpabilidade, baixa autoestima, instabilidade emocional e isolamento social. Um ambiente familiar desfavorável tem também impacto no seu trajeto escolar e de aprendizagem. Anos mais tarde, estas crianças serão adultos com maior probabilidade de apresentarem problemas de saúde mental, o que perpetua este ciclo vicioso intergeracional.

Da mesma forma que a doença mental tem um impacto negativo nas gerações futuras, as experiências positivas durante os primeiros anos de vida também podem ter um impacto multigeracional. Existe portanto uma janela de oportunidade para alterar o curso natural dos problemas de saúde mental nas famílias.

Neste sentido, é necessário oferecer apoio aos pais que sofreram experiências adversas no passado e, em simultâneo, prevenir fenómenos traumáticos e elevado stress emocional nas crianças e jovens. Nunca houve tanta evidência de que proteger e promover a saúde mental das crianças tem um impacto decisivo na saúde de toda a população a longo prazo. Promover hoje a saúde mental das crianças e jovens é beneficiar as futuras gerações. O bem-estar dos pais, desde a sua infância, irá influenciar a saúde dos seus futuros filhos.

 

CG

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