24 Set, 2018

Psicóloga Nora Cavaco defende terapias do autismo focadas nos interesses das crianças

Em entrevista ao Saúde Online, a psicóloga Nora Cavaco, do Centro Clínico do Algarve e do Instituto Nora Cavaco, fala-nos sobre o transtorno do espectro do autismo, o diagnóstico e quais as terapias mais indicadas.

Saúde Online (SO) | Como se manifesta o autismo?

Nora Cavaco (NC) | Os transtornos do espectro do autismo são distúrbios do neurodesenvolvimento. Ninguém se torna autista, nasce-se autista.

Conseguimos detetar em tenra idade. Verificamos que a criança não responde às solicitações da mãe, não tem o foco ocular, o corpo fica arqueado e rejeita o contacto com os adultos.

São vários indicadores, desde os mais leves aos mais severos, que nós verificamos e que revelam que a criança não manifesta uma comunicação socialmente ajustada relativamente ao que é considerado típico.

SO | O diagnóstico é feito através da identificação desses comportamentos?

NC | Exatamente. O diagnóstico é fechado e deveria ser realizado no máximo até aos 3 anos de idade.

O que identifica estas crianças é a incapacidade de comunicação social e dos comportamentos. Têm interesses específicos, não conseguem brincar, nem desenvolver nenhuma forma de comunicação espontânea, são literais também na forma do entendimento, o que é visível desde cedo. É importante verificar precocemente quais são as características para fechar o diagnóstico do transtorno do espectro autista.

A ausência não-verbal era um critério nuclear para fechar este diagnóstico. Atualmente já não é assim, uma vez que está presente noutros transtornos do neurodesenvolvimento. O que estamos a avaliar é o tipo de linguagem que manifestam, se existe a ausência de linguagem verbal.

 SO | O que pode desencadear este transtorno?

NC | Não temos nada que nos diga “vai ser autista”, é algo que se desenvolve e que se manifesta quando se dão as primeiras interações sociais. Por isso, dizemos logo que no contacto com a mãe não existe essa relação. Ela acha que o seu bebé é muito calmo, ou muito agitado, e muitas vezes não se dá conta que existem, naquela fase de desenvolvimento, indicadores de que o seu bebé resiste ou não tem interesse em estabelecer um tipo de relação.

 SO | Como se caracterizam os diferentes tipos de transtorno do espectro do autismo?

NC | O grau leve é aquele que tem preservado a componente cognitiva, portanto não tem nenhum défice intelectual. Contudo, a comunicação verbal revela pouco vocabulário e é pouco típico a nível de interesses. Têm uma forma de comunicar muito específica. Por vezes, também revelam alguma arrogância, sem o serem.

Os moderados ou severos podem ter outras patologias associadas como a hiperatividade, o défice de atenção, a síndrome de X frágil, perturbações do sono, entre outras patologias, que de alguma forma agravam.

Temos que ter presente o que é o transtorno do espectro do autismo e essas outras patologias. Devemos trabalhar com a criança para que consiga camuflar as dificuldades e para potenciarmos aquilo que ela revela preservar.

 SO | Considerando os diferentes graus de transtorno do espectro do autismo e as várias opções terapêuticas existentes, como se define e qual a melhor terapia a aplicar?

NC | Por vezes, os pais são assolados por sugestões e orientações, acabando por ocupar os filhos com imensas atividades. Nos transtornos do espectro do autismo, temos que perceber o que é que nós queremos para a criança naquela faixa etária.

Por exemplo, numa criança de 2 ou 3 anos que não tem bem desenvolvida um tipo de linguagem, é importante encaminhar para terapias que possam desenvolver essa comunicação. Se for uma criança com dificuldades de concentração, eu devo orientar os pais para uma atividade que seja motivadora nesse sentido. Tal como os outros jovens, as crianças têm os seus interesses e motivações.

Uns fazem equoterapia, outros preferem natação e outros gostam mais de música. O objetivo é o relaxamento.

Se desviarmos o foco de atenção para algo que sabemos que é estimulador para a criança, ela vai perdendo o comportamento desajustado e vai mostrando o adequado. É um trabalho intensivo, tem que ser sistemático, e devemos capacitar os pais, porque não é só no contexto clínico que é feito.

 SO | Quais são os cuidados que se devem ter no âmbito escolar?

NC | Se já tem o diagnóstico, temos que saber que esse jovem tem particularidades no comportamento. Devemos ter em mente que são crianças com dificuldades de interação, na comunicação, são literais no entendimento e, desta forma, sabendo do que estamos a falar, desenvolvemos estratégias. Como? Sabendo o que é importante e o que é que aquele jovem compreende. A partir daí, é necessário desenvolver um plano de atividades que não fuja ao currículo, mas que seja apetecível à criança, integrando os outros jovens. Não é minimizar o potencial dos outros, é simplesmente traçar os objetivos dentro de uma mesma atividade que possa ser ultrapassada por todos. Isto implica um planeamento, gestão de sala de aula, recursos humanos e materiais que devem ser trabalhados desde início. Isso é que é uma escola inclusiva. É aceitar as diferenças e estabelecer estratégias pedagógicas que permitam integrar essas diferenças.

 SO | Como caracteriza a evolução desta doença para a vida adulta?

NC | Se não existe uma intervenção adequada, quando chegam à adolescência os bloqueios podem ser maiores. Um jovem com transtornos do espectro autista tem todas as necessidades fisiológicas de qualquer outro adolescente. Se tiver outras patologias associadas, claro que mais se agrava esse quadro. O que devemos fazer é tratar precocemente, mesmo com o diagnóstico fechado, para atuar naquilo que é o potencial e no que está comprometido.

Desenvolvendo estratégias de comunicação, mostrando modelos ajustados socialmente para que consiga integrar-se da melhor forma na sociedade para que não chegue à idade adulta mais fechado, mais rígido, mais isolado no seu mundo, porque se ele não perceber porque é que tem que comunicar e socializar, não o vai fazer. Cabe aos profissionais de saúde e da educação prepará-los para esta realidade. Devemos sensibilizar as famílias que, perante os primeiros sinais, devem trazê-los a profissionais que realmente podem fazer um trabalho mais ajustado.

 SO | Mas é possível levar uma vida independente?

NC | Sim, com rotinas. Ao estabelecermos rotinas, o jovem vai sentir-se seguro e autónomo, e assim prever as mais diversas situações. Temos que trabalhar com algo que seja significativo para essa pessoa e que esteja relacionado com os seus interesses.

O que me custa muito observar é que, quando estes adultos estão em centros ou instituições, é frequente serem “infantilizados”. Independentemente do quadro, não podemos esquecer que já viveu até determinada idade, já teve estimulação, já passou por várias situações, positivas e negativas, e que, muitas vezes, as rotinas quando preenchidas por atividades mais infantis criam bloqueios maiores.

 SO | Considera que Portugal dispõe de meios adequados para prestar apoio a pessoas com transtornos do espectro autista?

NC | Ainda não. Infelizmente, mesmo nas escolas. Os profissionais não estão capacitados por falta de meios, recursos e de formação adequada. E fora da escola também não. Só falamos de inclusão na escola, mas o campo laboral não está próximo do desejável.

As famílias sofrem imenso, não conseguem trabalhar, alguém tem que ficar em casa para cuidar. Portanto, estamos muito aquém do desejável para esta população que precisa muito do nosso apoio, intervenção e de trabalho ajustado.

 SO | Diria que há cada vez mais casos de autismo no nosso país?

NC | Na clínica surgem cada vez mais casos deste transtorno, mas existem várias justificações: a componente genética, os fatores ambientais que podem ter o seu peso e influência, e também, um maior conhecimento, ou seja, pais mais informados e médicos cada vez mais preparados – também ocorre no campo da medicina, mas a nível de comportamento são os psicólogos que atuam. Estamos mais preparados para perceber e identificar.

Saúde Online

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