Prevenção do Burnout: Um desafio urgente para os médicos de família
Face à pressão sentida no dia a dia dos internos e especialistas em Medicina Geral e Familiar, hoje, vai decorrer uma sessão sobre “Prevenção do burnout”, na qual são apresentadas três ferramentas ou métodos que podem fazer a diferença na gestão do stress e na relação médico-doente. São estes: método de Balint, autoconhecimento (eneagrama) e o uso de algumas aplicações digitais.

Um em cada quatro médicos internos apresentava sintomas graves de burnout e 55,3% estava em risco de desenvolver a síndrome, num estudo divulgado pelo Conselho Nacional do Médico Interno da Ordem dos Médicos (OM), de 2023. A situação é preocupante, tendo em conta as várias dificuldades sentidas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), com sobrecarga de horários e com falta de recursos humanos.
De acordo com uma revisão realizada no âmbito de uma tese de mestrado em Medicina, por Ana Rita Sousa, estima-se que cerca de 30-40% dos médicos sofram de burnout a um nível suficiente para afetar o seu desempenho profissional e pessoal.
No caso concreto dos médicos de família, a prevalência de burnout tem aumentado nas últimas décadas. Vários estudos exploraram a incidência e a prevalência dos níveis de exaustão emocional e de burnout nestes profissionais, sendo que este último parece ser comum e tem prevalências variáveis entre 12% e 42%.
Em 2019, um estudo do médico de família Carlos Reis, alerta para “a pressão assistencial e exigência emocional elevadas”, diz Ana Margarida Cruz, médica de família na USF Bom Porto, ULS de Santo António, e uma das oradoras. O mesmo trabalho revelou que 17% destes profissionais apresentavam sinais claros desta síndrome. “Estes valores eram significativamente superiores aos reportados em estudos anteriores. De forma empírica, acredito que essa prevalência se mantenha ou até tenha aumentado, tendo em conta o atual contexto profissional e social.”
Como realça: “As consequências do burnout nunca devem ser subestimadas, pois afetam não apenas o indivíduo, mas também a sua equipa e o seu contexto social e familiar. Trata-se de uma reação extrema, um estado de exaustão no qual o médico perde a confiança nas suas capacidades e, literalmente, adoece.”
Para tal, é importante apostar na prevenção, que implica, segundo a médica, “a adoção de estratégias individuais e coletivas, que permitam uma melhor gestão emocional e psicológica da atividade profissional”.
Método Balint promove relação médico-doente e previne burnout
Na sua intervenção, Ana Margarida Cruz, vai apresentar o Método Balint. “Tomar consciência do nosso papel como médico de família exige uma mudança de postura e uma análise regular e consciente das nossas ações e reações ao interagir com outro ser humano que, naquele momento, assume o papel de paciente”, diz.
A familiarização com este método deve , mesmo, ocorrer logo nos primeiros anos da prática clínica, na sua perspetiva, já que permite desenvolver “um olhar atento sobre o seu próprio estado emocional e reconhecer, desde cedo, os sinais de desgaste”. “Esta consciência precoce possibilita uma intervenção atempada e mais eficaz na prevenção do burnout”, especifica.
São já vários os países que integram os grupos Balint na sua formação médica, como Brasil e Alemanha e, como referiu, alguns artigos apontam para a melhoria da relação médico-doente – com particular enfoque na empatia. Mas o principal ganho é na atividade profissional do médico, ao ter menos stress e menos conflitos.
O grupo Balint surgiu na Clínica Tavistock, em Londres, no início dos anos 1950. O médico Michael Balint, psiquiatra e psicanalista, deixou como legado um método que envolve a prática clínica “no seu mais precioso e sensível ponto de construção”, que é a relação médico-doente. “O médico é o próprio remédio é uma frase utilizada por Balint, espelhando a importância na nossa interação. O sistema complexo de uma consulta não se esgota em guidelines, orientações clínicas e comunicacionais teóricas”, explica.
Continuando: Os grupos Balint permitem uma experimentação e partilha segura da nossa relação médico-doente que, muitas vezes, nos aflige, incomoda ou inquieta. Dar o passo para a sua análise implica uma enorme vontade em ser melhor e progredir nesta nossa profissão.“
Embora a prevenção do burnout dependa, em grande parte, de estratégias individuais, é essencial que haja também mudanças a nível institucional. Daí que Ana Margarida Cruz tenha lembrado que é preciso criar e implementar políticas que promovam “um ambiente de trabalho mais equilibrado”, com cargas horárias adequadas.
Autoconhecimento (eneagrama) como estratégia de prevenção individual e em equipa
“Atualmente, defende-se que a melhor abordagem da síndrome de burnout é a conciliação entre métodos e estratégias a nível individual com estratégias organizacionais”, afirma Inês Rosendo, médica de família na USF Coimbra Centro, ULS de Coimbra.
A médica de família vai partilhar a sua experiência com a ferramenta de autoconhecimento que tem sido aplicada em cursos, em equipas, em USF, empresas, serviços hospitalares ou na universidade. “Temos estudado os seus efeitos e parece ser protetor do burnout, porque contribui para um maior conhecimento das nossas formas de reagir e de atuar, para as aprimorar e desenvolver e, conscientemente, tomar atitudes que nos ajudem melhor a proteger do stress emocional”.
Outros benefícios do autoconhecimento é a realização pessoal e, em equipa permite às pessoas conhecerem-se mais profundamente umas às outras, fora de contexto apenas de trabalho. “Também se trabalha a nossa equipa como um todo e como esta pode caminhar para um maior crescimento.” Em suma, o eneagrama ajuda a ter uma maior consciência individual e também das pessoas da equipa, assim como leva a que se tenha mais tempo para parar e olhar para dentro e uns para os outros de outra forma, trabalhando a autocompaixão e a compaixão para com os outros.
O papel das tecnologias digitais na promoção do bem-estar e prevenção do burnout
Ana Luís Pereira, médica de família e CEO da HSC Healthy Smart Cities, vai abordar a forma como as tecnologias digitais são ferramentas importantes para prevenir e tratar esta condição de saúde, “oferecendo soluções acessíveis e baseadas em evidência científica”. “A dimensão deste problema levou a que empresas, como a Microsoft, que fornecem software de apoio a gestão de organização, incluíssem na sua carteira soluções o apoio à saúde mental”, salienta.
“As terapêuticas digitais aparecem com soluções promissoras que ajudam a rastrear, monitorizar e tratar sintomas relacionados com o burnout”, enfatiza.
E enumera alguns exemplos. O Vickybot, por exemplo, é um chatbot desenvolvido para profissionais de saúde, que recorre a machine learning e a uma aplicação móvel para fornecer apoio psicológico personalizado. “Estudos demonstram que esta ferramenta reduz significativamente os sintomas de burnout e ansiedade, melhorando o bem-estar dos utilizadores.”
Existe, ainda, o Woebot, um assistente virtual baseado na terapia cognitivo-comportamental (TCC), que ajuda os utilizadores a gerir emoções negativas e a promover estratégias de resiliência emocional. A evidência científica aponta para a sua eficácia na redução da ansiedade e depressão, condições frequentemente associadas a burnout.
Ferramentas digitais baseadas em mindfulness, como a Headspcae e a Calm, têm mostrado também impacto positivo na gestão do stress. “Estas aplicações ajudam a melhorar a resiliência emocional e a qualidade do sono, aspetos essenciais para a promoção da saúde mental. Embora os dados sobre a sua influência direta no burnout ainda sejam limitados, estas soluções foram especialmente valorizadas durante a pandemia de covid-19”, indica.
A aposta em programas estruturados para integrar terapêuticas digitais no sistema de saúde tem sido crescente. Na Alemanha, o programa DiGA permite que aplicações de saúde digital sejam prescritas por médicos, facilitando o acesso a intervenções personalizadas. Em Portugal, o projeto BENDiT-EU combina ferramentas digitais para apoiar a gestão do stress em estudantes do ensino superior, promovendo estratégias de autocuidado e prevenção de problemas de saúde mental.
Para os médicos de família, estas tecnologias representam, segundo a especialista, “um recurso complementar valioso” na abordagem ao burnout. “A incorporação de ferramentas digitais na prática clínica pode melhorar a monitorização dos pacientes, otimizar a identificação precoce de sinais de alerta e oferecer intervenções baseadas na melhor evidência disponível”, explica. No entanto, como acrescenta, “é essencial garantir que estas soluções sejam integradas de forma segura e eficaz, respeitando a privacidade dos utilizadores e a ética médica”.
O futuro da prevenção e tratamento do burnout passa, assim, por uma abordagem integrada que combine o suporte humano com o potencial das novas tecnologias. “Investir na investigação e desenvolvimento destas ferramentas, bem como na formação dos profissionais para a sua utilização adequada, será fundamental para promover ambientes de trabalho mais saudáveis e sustentáveis”.
A sessão contará com a moderação de Susete Simões, médica de família na USF Beira Saúde da ULS Castelo Branco.
Maria João Garcia